tradução de Maria de Lourdes
Guimarães e Laureano Silveira
(Terra do Desejo - fotos de João Tuna)
CANÇÃO DA VELHA MÃE
Levanto-me de madrugada. ajoelho-me e sopro
Até que as sementes do fogo crepitem e brilhem.
Depois ponho-me a esfregar, cozer o pão, varrer
Até que espreitem as estrelas e cintilem.
E nos seus leitos dormem raparigas, sonhando
Combinar as fitas do cabelo e as do peito,
E passam o dia inativas,
E suspiram se o vento lhes sopra uma madeixa;
Enquanto eu, porque sou velha, tenho de trabalhar,
E as sementes do fogo definham e arrefecem.
QUANDO FICARES VELHA
Quando ficares velha, grisalha e sonolenta
E cabeceares à lareira, pega neste livro
E lê-o devagar, sonha com o amor meigo
E com as sombras profundas outrora nos teus olhos;
Quantos amaram os teus momentos de feliz encanto
E a tua beleza com amor falso ou autêntico,
Além daquelehomem que amou em ti a
alma peregrina
E as tristezas que alteravam o teu rosto;
E curvando-te mais sobre a lareira ao rubro,
Murmura, um pouco triste, como o Amor fugiu
E caminhou sobre as montanhas lá no alto
E escondeu o rosto numa multidão de estrelas.
EFÉMERO
"Os teus olhos, outrora nunca cansados dos meus,
Ocultam-se tristes sob pálpebras cerradas
Porque o nosso amor declina." E
ela disse:
"Embora o nosso amor esteja em declínio, fiquemos
Mais uma vez junto à solitária margem do lago,
Unidos nessa hora de tranquilidade
Quando a cansada e infeliz criança, a Paixão, adormece.
Como parecem distantes as estrelas, e distante
O nosso primeiro beijo e tão velho o meu coração!"
Pensativos caminharam por entre as folhas murchas
Enquanto ele, tomando-lhe a mão, lentamente respondeu:
"A paixão muitas vezes cansou os nossos corações inconstantes."
Os bosques cercavam-nos e as folhas amarelas
Caíam como débeis meteoros na escuridão e um coelho
Velho e aleijado passou de repente a coxear pela vereda;
O Outono tombava sobre ele. E agora eles ali estavam
Uma vez mais na solitária margem do lago:
Voltando-se, viu-se que ela lançara folhas mortas,
Colhidas em silêncio e orvalhadas como os seus olhos,
Sobre o seio e os cabelos. "Oh,
não lamentes", disse ele,
"O nosso cansaço; outros amores nos aguardam;
Odeia e ama ao ongo das serenas horas.
Aguarda-nos a eternidade; as nossas almas
São amor e um contínuo adeus."
OS PÁSSAROS BRANCOS
Quem me dera que fôssemos, amor, pássaros brancos sobre a espuma do mar!
Cansamo-nos da chama do meteoro antes de ele fugir e se extinguir;
E a chama da estrela azul do crepúsculo, suspensa sobre a orla do céu,
Despertou nos nossos corações, amor, uma tristeza que não pode morrer.
Humedecida de orvalho chega uma lassitude daqueles que sonharam o lírio e a
rosa;
Oh, não sonhes com eles, amor, a chama do meteoro que passa,
Ou a chama da estrela azul que se detém suspensa na queda do orvalho.
Pois quem me dera que nos tornássemos pássaros brancos sobre a espuma
errante: eu e tu!
Estou assombrado por inúmeras ilhas e muitas praias das Danaan,
Onde o Tempo certamente nos esqueceria e Tristeza não mais se aproximaria de
nós;
Em breve estaríamos longe da rosa e do lírio e seríamos consumidos pelas
chamas,
Se ao menos fôssemos pássaros brancos, amor, flutuando na espuma do mar!
NOVIDADES PARA ORÁCULO DE DELFOS
I
Ali jazem os que são diferentes e auréos,
Com o orvalho prateado,
As grandes águas suspiraram de amor,
E o vento que suspirou também.
Niamh, aquela que os escolhe, recostou-se e suspirou
Junto de Oisin na relva:
Ali suspirou entre o seu coro de amor
O imortal Pitágoras.
Raiado de sal sobre o seu peito,
Plotino veio, olhou em volta,
E, num bocejo, tendo-se deitado
Ficou a suspirar como os outros.
II
Montados no dorso de um golfinho
E seguros a uma barbatana,
Aqueles que são puros revivem a sua morte,
Abertas de novo as suas feridas.
As águas extáticas riem porque
Os seus gritos são doces e estranhos,
Dançam com passos ancestrais,
E os selvagens golfinhos mergulham
Até que numa baía abrigada por abruptos rochedos,
Por onde perpassa o coro do amor
Ofertando as sagradas coroas de louro,
Eles se libertam do seus fardos.
III
Peseu olha Tétis fixamente,
Esguia adolescência que uma ninfa desnuda..
Os seus membros são delicados como pálpebras,
O amor cegou-o com as suas lágrimas;
Mas o ventre de Tétis está atento.
Das vertentes da montanha, onde fica
A caverna de Pã, uma música
Áspera principia a descer.
Imunda cabeça de cabra, braço brutal,
É ali que surgem; ventre, ombro, nádegas
Dardejam como peixes; ninfas e sátiros
Copulam na espuma.
NUNCA ENTREGUES TODO O CORAÇÃO
Nunca entregues todo o coração, pois não vale
Muito a pena pensar no amor
Demulheres apaixonadas desde que
firma
Nos pareça, e nunca elas imaginem
Quanto vai definhando de beijo para beijo,
Pois tudo o que nos seduz mais não é
Do que fugaz deleite, doce e sonhador.
Oh, nunca entregues o coração completamente,
Pois elas, por mais que os suaves lábios o afirmem,
Entregaram ao jogo os seus corações.
E quem poderá ainda jogar bem
Se estiver surdo, mudo e cego de amor?
Aquele que fez isto sabe o quanto custa
Pois entregou todo o coração e perdeu.
UMA RAPARIGA ENLOUQUECIDA
Essa rapariga enlouquecida improvisando a sua música,
A sua poesia, dançando sobre a praia,
Com a sua alma de si mesma dividida
Trepando, caindo sem saber aonde,
Escondendo-se entre a carga de um vapor,
De joelhos esfolados, essa rapariga, eu a declaro
Algo de majestoso e belo, ou algo
Perdido heroicamente, heroicamente achado.
Ocorresse o que ocorresse
Ela deixava-se envolver pela desesperada música
E envolvida, envolvida, construía o seu triunfo
Onde os fardos e os cestos não produzem
Qualquer som comum inteligível
Mas cantavam: "Ó faminto mar. mar esfomeado."
AS QUATRO IDADES DO HOMEM
Começou a lutar com o corpo,
Mas o corpo venceu: caminha erguido.
Depois lutou com o coração:
Separaram-se a inocência e a paz.
De seguida lutou com o espírito;
Ficou abandonado o seu coração orgulhoso.
com Joana Providência (coreógrafa), Rosa Quiroga (atriz), Tânia Almeida (atriz e criadora das CdM) e ainda Constança Carvalho Homem (tradutora e dramaturgista), Sandra Salomé (atriz) e Ana Limpinho (cenógrafa)
FALEMOS DE CASAS
A
casa, seja como metáfora, lugar de exploração temática, ou segredo, é
uma imagem abundantemente trabalhado pelas artes performativas.
Interior, exterior, habitantes e visitas, imagéticas cenográficas e/ou
coreográficas. Será este o ponto de partida para mais uma conversa de
porta aberta, no momento em que se preparam INABITANTES, solos que irão
habitar a casa do Projeto Pedagógico e TERRA DO DESEJO, onde uma casa
ancestral é ameaçada pela vinda das fadas. Não podemos deixar de
recuperar CASA GRANDE, projeto maior das Comédias do Minho nestes
últimos anos de ciclo intensamente territorial.
com Lee Beagley (encenador da P.S. - Produções Suplementares) e Gonçalo Fonseca e Luís Filipe Silva (atores e criadores das CdM)
REINOS CIDADES PROPRIEDADES -TERRITÓRIOS ARTÍSTICOS
Na preparação de DIVIDIDOS, um Rei Lear de Shakespeare nas paisagens do
Vale do Minho e de A CONSTRUIR VALENÇA, uma ópera escolar que
'ficciona' a história da cidade, vamos discutir de que modo um território demarcado pode construir-se como lugar de criação e interpelação artísticas.
(clique nos links para ouvir - todas as respostas de Lee Beagley são seguidas de tradução feita no momento por João Pedro Vaz)
Chegada da trupe de comediantes ao exterior Música de chegada e convite ao público para entrar
Vinde ouvir ó bom povo
Uma historia escabrosa
Crime de sangue e nojo
De uma filha ambiciosa
O amor foi traiçoeiro
Fez desejar ter prazer
Um prazer tão prazenteiro
Que fez o sangue correr
Mãe morta mãe morta
Foi por filha decepada
Espeta corta e recorta
Fica a mãe bem separada
Cena 2 - Apresentação da história
Nuno
- Senhoras e senhores venham conhecer a história de Maria José, do
José Maria e de Matilde
PAIS DE FAMÍLIA! Atendei e vereis o maior de quantos crimes se tem visto
no mundo! Vereis uma filha matar a sua mãe, porque esta lhe não deixava
fazer o quanto desejava.
Vasco - Vereis como essa
filha corta a cabeça de sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr
cada pedaço de corpo de sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém
conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e despedaçara.
Nuno
- Vereis como a matadora de sua mãe, de sua mãe ó pais de famílias, de
sua mãe, que a trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus
peitos, que a criara ao seu lado com beijos e afagos, que tirara o pão
da sua boca para o dar à sua filha, que fora talvez pedir uma esmola
para que a sua filha não tivesse fome, e não desse seu corpo em troca de
um bocado de pão!
Pedro - Vereis como esta filha sem
alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do inferno, é descoberta
como matadora de sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus!
Vasco
- Vereis aquela mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e
contentamento, ao pé da cabeça ensanguentada de sua mãe
Nuno – É essa a cabeça da tua mãe?
Mónica - Sim! Essa é a cabeça de minha mãe!
Nuno
- Pais de famílias! Eu vou contar-vos o mais triste e espantoso
acontecimento que viu o mundo, e que talvez não torne a ver. Chamai
vossos filhos convosco e fazei que eles a decorem, que a tragam consigo,
e que a repitam uns aos outros.
Cena 3 - A vida do ilustre Camilo
Já na sala enquanto se monta o cenário
Vasco - Ilustre público, hoje, para vós, iremos apresentar o drama "Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!”,
Pedro - historia alinhavada pelo grande Camilo Castelo Branco
Nuno - de quem a vida dava também ela um romance
Vasco
- Mas aos 23 anos ainda antes da sua vida ter chegado aos capítulos
centrais e antes do engenho marcar sua escrita, deixou para gaudio de
todos nós esta história pavorosa
Pedro - Era o ano de
1848, Camilo está no Porto sem saber de amigo nem família, nem tão pouco
de comida certa. Deixou-nos ele dito de sua boca que mais não era que
Nuno - “anjo puro de inocência”
Vasco - “um anjo literário”.
Pedro
- O trabalho, em dois jornais que lhe aceitam os escritos, são de má
paga. Já o hotel francês, ali há rua da fabrica, esse que as
mensalidades em dia
Vasco - E que fazer?
Nuno - Os jornais noticiaram um dia o assassinato de uma pobre velha, atribuído à sua própria filha.
Pedro
- Mas disso Camilo não o podia ainda saber. E numa noite, senhoras e
senhores, em apenas uma noite escreve Camilo pequeno e comovente livro
que merce a atenção do público é comprado sofregamente, salvando assim o
poeta da bancarrota.
Nuno -Senhores, às musas não mais
pedimos que nos iluminem como iluminaram o ilustre Camilo Castelo
Branco para que possamos nós abrilhantar o vosso serão com historia tão
pungente, tão sofrida que ficará para sempre na vossa memoria e de onde,
estou certo retirareis mil ensinamentos.
Pedro - E
mais pedimos, desta feita a vossas senhorias, que sejais beneméritos na
avaliação que por certo fareis do nosso desempenho. E que, quando os
chapéus rodarem por entre vós, não vos acanheis e saberdes dar justo
pagamento a quem vos emocionou e vos levou às lágrimas.
Nuno - Que possa uma vez mais a triste história de Maria e sua mãe salvar artistas da bancarrota.
Vasco - Mas deixemos por agora de lado o lado prosaico da vida, e vamos pois emita-la
Pedro - Mas com a distância de história contada, o que torna tudo mas aceitável.
Retoma a música para entrada na sala
Cena 4 – A História
Nuno
- Em Lisboa, na travessa das Freiras n.º 17 havia um homem chamado
Agostinho José casado com Matilde de Rosário da Luz. Tinham duas filhas,
uma das quais se chamava Maria José. Farto de trabalhar para sustentar
com o suor de seu rosto a honra de sua família. Agostinho José morreu, e
deixou entregue à sua virtuosa mulher as suas duas filhas, dizendo-lhe:
Vasco
- Matilde, quando não puderes trabalhar com tuas filhas, vai pedir
uma esmola para lhes dares um bocado de pão, mas não as deixes cair na
desgraça de mundanas, porque eu não me poderei salvar se minhas filhas
desonrarem minhas cinzas.
Nuno - O pobre velho morreu
abraçado à sua querida mulher, e amadas filhas, e pode-se dizer que os
levou atravessados na garganta para a sepultura.
Tânia – Ai filhas….
Mónica e Ivo – Oh Mãe…
Vasco
- A desgraçada viúva pôs uma das suas filhas a servir em casa de
honrados amos, e 'ficou com a outra em casa para a ajudar a viver.
Ivo sai de cena
Mónica
e Tânia - "Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome;
venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra
como no Céu; o pão nosso de cada dia dai-nos hoje; perdoai-nos as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos
deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém."
Ave, Maria cheia de graça, o Senhor é convosco;
bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso
ventre, Jesus.
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores,
agora e na hora de nossa morte. Amém.
Pedro começa a segunda ave maria
- Metia compaixão ver aquela mãe, tao contente com a sua filha depois
de terem ambas repartido entre si os poucos lucros do seu trabalho,
aplicados para um bocado de pão e uma sardinha, ver como ela ensinava à
filha as orações que já sua mãe lhe havia ensinado, o modo de pedir a
Deus um meio de passar a vida com honra e sem vergonhas do mundo!
Vasco
- Maria José parecia que amava sua mãe com toda a sua alma e coração.
Andava de dia vendendo algumas coisas numa tendinha que tinha comprado
com as economias de sua mãe e à noite rezava o terço à Virgem Maria, e
ao mesmo tempo compunha meias para fora, com cujo produto se vestia.
Nuno
- Toda a vizinhança olhava para esta rapariga com admiração porque já
tinha 29 anos, e ainda não havia nota ruim que se lhe pusesse, e ninguém
se atrevia a pôr nela a boca.
Valsa Canta o Pedro
A vida muda, muda
O mundo gira, muda
Passa o tempo e muda
Muda a vida de quem anda
Neste mundo, neste tempo
Tudo muda, tudo gira
Nada é certo, completo
Firmemente nada é
Para sempre nada dura
Tudo muda, muda
A vida gira, muda
Passa o mundo e muda
Gira o tempo todo tempo
Tudo muda, tudo morre
Nada fica cá p´ra sempre
Tudo cai e se levanta
De tudo se faz mudança
Nada pára tudo avança.
Cena 5 - O Vilão
Vasco
- Uma vez andando Maria José vendendo com a sua tenda, chegou-se ao pé
dela um rapaz de boas maneiras, e começou a conversar com ela sem lhe
dizer coisa que tivesse maldade.
Todos saem, fica só Mónica e entra Ivo
Mónica – Olha Lenha, olha o carvão
Para aquecer e para o fogão
Ivo – É lenha!
Mónica – É! É lenha.
Ivo – Eu gosto… da lenha.
Mónica – Ah. Eu também.
Ivo – Ah!
Mónica – É!
Ivo – E também tem carvão.
Mónica – Tenho, tenho carvão.
Ivo – Eu também gosto do carvão, gosto muito do carvão.
Mónica – Ah… eu prefiro a lenha, suja menos.
Ivo – Sim, o carvão suja. Uma porcaria. Odeio carvão.
Mónica – Pois.
Ivo – É
Mónica – Olha Lenha, olha o carvão
Para aquecer e para o fogão
Compre à Maria José
A melhor lenha que há ….é
Ivo – Ah Maria José?
Mónica – É.
Ivo – Oh José Maria.
Mónica – Oh quem diria….
Silêncio curto
Ivo – Odeio carvão. Suja muito
Mónica – Pois é…
Ivo – Maria José…
Mónica – José Maria…
Ivo – Quem diria…
Pedro
- A rapariga escutou-lhe as palavras, e ficou entendendo que o José
Maria não era mau rapaz e que a não buscava para maus fins. E continuou a
conversar com ele.
Ivo – De forma que eu botei de fugir dali, mas eles vieram atrás de mim, mas lá consegui escapar-lhes
Mónica – E o presunto?!
Ivo – Não o larguei.
Mónica – E depois?
Ivo – Comi, ora essa, ia fazer o quê?
Mónica – Deve ser bom o presunto…
Ivo – É!
Mónica – Ah!
Ivo – É… é salgado… nem gostei…Não é assim….
Mónica – Nunca comi.
Ivo – Mas comerás
Mónica – Comerei…
Nuno
- Continuou a conversar com ele, até que ele lhe chegou a dizer que se
fosse da vontade dela, que se lhe não dava de casar com ela.
Maria José não desgostou de ouvir o que lhe disse o seu conversado, e
respondeu-lhe que quem governava nela que era a sua mãe, e se ele não
estava a mangar que fosse falar com ela, e talvez lhe desse o sim,
porque sua mãe não a queria para freira.
Cena 6 - Pedido de casamento
Ivo entra
Tânia – Quem está aí? Que é que você está aqui a fazer?
Ivo – Dona Matilde.
Tânia – Que tem?
Ivo – A sua filha…
Tânia – Ai ai minha filha…
Ivo – Como é que lhe hei-de dizer isto?
Tânia – Aiiiiii! A minha filhinha! A minha Filhinha morreu…
Ivo – Morreu
Tânia – Ai que ela morreu
Ivo – A Maria José morreu
Tânia
- Valha-se santa Filomena, que a minha filhinha se foi e agora está lá
junto ao meu Agostinho. AI filha … ai minha querida filha, ai filhinha
Ivo e Tânia - E de que morreu ela?
Ivo – Então você é que disse que ela morreu!
Tânia – Você é que disse
Ivo – Eu?! Eu vinha cá era para pedir o seu consentimento…
Tânia –O meu consentimento para quê?
Ivo – Para eu e ela…
Tânia –Para tu e ela o quê?
Ivo – É para lhe pedir a mão dela.
Tânia – Ai filha! A mão dela?
Ivo – É, eu mais ela temos conversado…
Tânia – E já conversam à muito?
Ivo – Ah… sim, há já um bocado que somos conversados…
Tânia – Então queres casar com a minha Maria José… e como te já chamas?
Ivo – Eu sou José maria
Tânia – ahh!
Ivo – Quem diria.
Tânia – Diria o quê?
Ivo – Quem?
Tânia – Quem diria
Ivo – Pois, que eu sou o José maria
Tânia – E?...
Ivo – E ela é Maria José
Tânia – É.
Ivo – Pois é, quem diria
Tânia – diria o quê?
Ivo - ai valha-me deus…
Tânia suspensão de quem vai retomar a ladainha – E és temente a Deus?
Ivo – Sim…
Tânia – E vais á missa
Ivo – Sempre que posso.
Tânia – E és amigo do trabalho?
Ivo – Eu cá, dona Matilde sou amigo de meu amigo, e se meu amigo é amigo eu sou seu amigo também. E nos amigos não se toca.
Tânia – Então a Maria José e o José Maria…
Ivo – Quem diria… pretendemos casar se for do seu grado …
Tânia – Eu também não a queria para freira
Ivo – Era um desperdício
Tânia – Manda então ler os banhos.
Ivo – Os banhos?!
Tânia – Sim.
Ivo – Na igreja?
Tânia – Sim!
Ivo – A do padre?
Tânia – Sim!!
Ivo – O da paroquia?
Tânia – Sim!!!
Ivo – Pois tem que ser … bom eu vou então mandar ler os banhos…
Samba canta o Ivo
A vida muda, muda
O mundo gira, muda
Passa o tempo e muda
Muda a vida de quem anda
Neste mundo, neste tempo
Tudo muda, tudo gira
Nada é certo, completo
Firmemente nada é
Para sempre nada dura
Tudo muda, muda
A vida gira, muda
Passa o mundo e muda
Gira o tempo todo tempo
Tudo muda, tudo morre
Nada fica cá p´ra sempre
Tudo cai e se levanta
De tudo se faz mudança
Nada pára tudo avança.
Cena 7 - O pecado
Pedro
- José Maria continuou a ir a casa da esposada, enganando-a que se
estavam a ler os banhos.
A rapariga afez-se a ter paixão por ele, porque o via a todas as horas, e
esperava que o traidor lhe não mordesse a palavra.
A mãe, que tinha mais anos e mais experiência do mundo, agourava mal
daqueles amores, porque os banhos nunca mais se acabavam de ler, e o
José Maria tinha já uma confiança em sua casa como se fosse marido de
sua filha.
Passagem do tempo. Quatro vezes vai José Maria a casa de Maria José.
Primeiro tímido, leva uma maça para dar à dona da casa. À distancia, os namorados trocam olhares
Tânia - Oh Maria!
Mónica - Ai mãe.
Ivo saindo – Ai!
Depois já mais confiante, leva ainda uma maça. Sentam-se mais perto os namorados e tentam o contacto físico sob o olhar da mãe.
Tânia - Oh Maria!
Mónica - Ai mãe.
Ivo saindo – Ai!
Já muito à vontade, tira as maças à mãe para as partilhar com a filha bem juntos sentados lado lado.
Tânia - Oh Maria!
Mónica - Ai mãe.
Ivo saindo – Ai! Ai!
Na
última visita a mãe antecipa-se e senta-se estrategicamente no espaço
central. Os apaixonados não se incomodam e Maria senta-se ao colo de
José no espaço livre.
Tânia - Oh Maria!
Mónica - Ai mãe.
Ivo saindo – Fogo!
Pedro
- Quando aquela boa mãe repreendia com boas maneiras a muita fraqueza
da filha, esta toda se arrufava, e virava as costas à mãe, resmungando
palavras desobedientes.
Filhas ingratas! Não sabei vós que torcer os olhos de mau modo para uma
mãe é o mesmo que cuspir nas tabuas da lei de Deus!
O enganador José Maria, com o demónio no coração, a impostura na boca
foi pouco a pouco amolecendo a fraca resistência que Maria José fazia ao
seu brutal apetite. A pobre rapariga se tivesse ouvido os conselhos de
sua mãe não cairia na desgraça de se deixar enganar como de facto deixou
pelo seu pérfido homem que para outra coisa não ia àquela casa, senão
para fazer jogo da confiança que lhe fora dada.
Cena 8 – Aparece o monstro.
Pedro - A infeliz mãe pressentiu a desonra de sua filha e já não lhe podia valer:
Tânia
- Minha filha! Eu muitas vezes te disse o que eram os homens, não que
eu tivesse queixa do meu. Porque teu pai era honrado e virtuoso Como
aqueles que o são; mas porque os rapazes de hoje não são o que eram os
dalgum dia.
Disse-to muitas vezes, e tu ou me respondias com arremesso e enfado ou
me viravas as costas em ar de desprezo. Não te pude valer. Deus Nosso
Senhor me perdoe - se eu não tive forças para te castigar, porque eu
tinha-te muito amor, e nunca me capacitei deveras que houvesse um tredo
tão grande como o José Maria.
Mas já agora que não tem remédio, minha filha, filha do meu coração, em
bom pano cai uma nódoa. Minha filha, por alma de teu pai que está na
presença de Deus a pedir teu perdão, pelas cinco chagas te peço que
deixes esse homem, que há-de acabar de te lançar na perdição, onde não
acharás meios de te salvar da justiça de Deus, e das vergonhas do mundo.
Mónica
- Minha mãe, ora deixe-me que não estou para aturá-la. Ainda vinha a
tempo com os seus sermões. O valer-me era a tempo, agora que eu sou dele
como se fosse sua mulher hei-de ser com ele desgraçada até à morte.
Sabe que mais? Se casar, casou; se não casar é o mesmo; eu gosto e ele
gosta...
Tânia - Ai minha filha que linguagem é hoje a
tua tão diferente daquela que era antes de este maldito aqui entrar. Ai
minha filha que estás de todo! Ó meu marido perdoa-me, perdoa-me, bem
vês que eu não fui culpada.
Mónica -Ó minha mãe... sabe
que mais… Se quer estar comigo há-de ver, ouvir e calar, que é regra de
bem viver, se não quiser a rua é larga, o mundo é grande.
Tânia - Queres dizer com isso que me pões fora de casa, não é o queres dizer-me?!
Mónica - Ou isso, que vale a mesma coisa.
Tânia
- Pois então sabe que se eu até aqui te tratei como mãe carinhosa, de
hoje em diante hei-de ser mãe como deve ser.
Se de ora em diante aqui tornar a ver José Maria hei-de queixar-me à
administração do concelho que esse homem vem a minha casa contra a minha
vontade, e tu e mais ele haveis de ser atrancados no Limoeiro, tu como
filha desobediente e ele como um sedutor de uma rapariga que se deixou
ir de suas palavras.
Mónica - Bem me importa a mim
dessas coisas, pela constituição não se prende ninguém por seduzir
raparigas, e de mais foi muito de meu gosto, acabou-se, está dito. (SAI)
Repete música de evoluir história
Tânia
- Veremos, Maria, veremos qual de nós é que vence! Oh meu Deus, mudai
as tenções da minha filha, mostrai-lhe a verdade das minhas palavras, e
fazei que ela conheça o caminho da perdição, onde a sua má estrela a
lançou.
Cena 9 – A ideia de crime
Nuno
- A filha ria-se de escárnio, e ao mesmo tempo estava com ódio a sua
mãe. Deus não quis tocar-lhe o coração, porque Ele quis ver até que
ponto poderiam chegar os crimes no século de desmoralização e pecado em
que vive- mos.
Passou-se aquele dia de lágrimas para a mãe, e Maria José não apareceu
em casa o resto do dia porque tinha ido onde estava o seu amante.
Fado do crescer tarde canta a Mónica
Só se perde o que se tem
Ninguém chora o que não sabe
A vida ensina também
Que o prazer não é pecado
A vida só sabe bem
Se tem sabor completo
E não se vive também
E não se vive tão bem
Sem coração inquieto
Ninguém vive meia vida
Ninguém vive sem amar
Não quero vida fingida
Não quero vida sofrida
Eu nasci para te adorar
Mónica – A minha mãe não te quer tornar a ver lá em casa
Ivo peito feito para a luta – Ai é? Mas ela que é que tem que dizer…
Mónica – É diz que se lá voltares faz queixa à administração central
Ivo peito vazio que era só ar – Ai é?
Mónica – E que tem?
Ivo – Alembras-te do presunto. Era do padre e ele foi fazer queixa
Mónica – O da paróquia
Ivo – Sim.
Mónica – E os banhos?
Ivo – …de forma que agora os beleguins da administração andam assim de olho em mim…
Mónica – Ai …
Ivo – … e não era muito bom …
Mónica – O presunto?
Ivo – não, o dar nas vistas é que não era bom, o presunto era bom.
Mónica – pois, nunca comi…
Ivo – Mas comerás
Mónica – Comerei…
Ivo – Ai, se a tua mãe não existisse…
Pedro
- Oh Céus, onde estão os vossos raios que não caem sobre a cabeça deste
infame, que pede a uma amante que mate sua mãe, para mais a salvamento
gozar os seus escandalosos e torpes desejos!
Oh céus! Como quereis que um homem vos insulte tão claramente,
atrevendo-se a proferir estas palavras: Ó filha mata tua mãe...
Meu Deus, eu sou um fraco bichinho na terra, e atrevo-me a interrogar a
vossa alta sabedoria! Perdoai-me, meu Deus!
Fado - Filha mata a tua mãe
Vasco – Oh filha mata a tua mãe (x12)
Cena 10 – A súplica
Nuno
- Maria José, quando tornou para casa, no dia seguinte, ainda sua mãe
não tinha comido nem bebido e estava deitada sobre a cama, vestida, com
os olhos inchados de chorar.
Parece que tinha envelhecido vinte anos. As rugas da pele tinham-se
aprofundado, e os cabelos embranqueceram-lhe em o espaço duma só noite.
Mónica - Então que faz aí?
Tânia
- Minha desgraçada filha! Atende às lágrimas de tua mãe; bem vês que é
aquela que te deu ao mundo, que sofreu as dores de mãe, que se lança de
joelhos a teus pés, pedindo que não lhe cubras a cara com o negro véu da
vergonha nos últimos dias de sua vida.
Mónica – Mãe…
olhe que se assim continuar não há-de viver muito. Mãe, ou o José Maria
há-de ter aqui entrada a toda a hora do dia e da noite, ou então...
então... Ai mãe.
Tânia – Ai filha
Cena 11 - Entra em cena o vilão
Vasco - Nisto entrou o José Maria.
Mónica e Ivo abraçam-se
Nuno
-. Matilde, assim escarnecida por essa filha prostituta, arrancou do
peito um grito de dor como se lhe tivessem dado uma facada no coração.
Tânia – Ai, nossa senhora das almas!
Que deus me perdoe que fui uma fraca!
Eu te esconjuro filha encardia!
E tu belzebu!
Que mais não és que pecado de perna, a ti te condeno. Para sempre.
Que sobre vós caiam as pragas. As dez do Egipto e as sete do Apocalipse. Que vos comam as carnes e vos rilhem os ossos.
Que vos queime o fogo que queimou Gomorra, que vos coma o enxofre que comeu Sodoma.
E seja eu sal! Se a vós vos botar um olhar que seja de piedade ou dó.
Ivo e Mónica encostam-se sobre o lado direito.
Pedro
- Por fim a infeliz e atribulada viúva, a mãe de todas as mais
desgraçadas, não teve remédio senão calar-se porque não queria que os
vizinhos escutassem as desonrosas e vergonhosas questões que haviam em
casa.
Cena 12 – A chantagem
Ivo
- Maria; ou tu hás-de dar cabo dessa maldita velha o mais breve, ou
então eu deixo-te por uma vez, e não quero saber de desgraças.
Mónica
– Ora, eu tenho medo de a matar, ela grita e cá por cima mora a mestra
de meninas, que a ouve, e depois se se sabe que há-de ser de mim?
Ivo - Tu és uma estúpida? O matá-la é de dia porque as meninas fazem barulho a ler, e não se devem ouvir os gritos de tua mãe.
Mónica
- Mas eu tenho tanto medo de matá-la!!... Tenho alguma pena dela, se tu
casasses comigo já ela te não proibia que cá viesses, e se me tens
amor, a ponto de quereres que eu mate minha mãe, então porque não casas
comigo
Ivo - Está bom, está bom, temos lamúrias? Se queres, queres, se não queres nentes que se escama o gajo.
Cena 13 – Quem leva do amante, vinga-se na mãe.
Pedro
- Isto são ditos que os vadios e brejeiros têm sempre prontos. José
Maria foi-se, e a rapariga, desesperada e aflita com os feios modos e
destemperos do seu amante, foi-se ter com a mãe, e descompô-la com estas
e outras palavras…
Mónica não avança para o centro da cena. Ivo continua em cena.
Os outros avançam.
Ivo e Mónica reagem
Eles desistem. Viram-se para o Nuno
Nuno imitando Mónica
- Você seu estupor velho, é a causadora da minha perdição. O meu regalo
era pegar numa faca e cortar-lhe a cabeça com ela. Seu estafermo saia
daqui...
Vasco - E dizendo isto deu um pontapé na mãe, que não teve remédio senão sair do lugar aonde estava para o patamar da escada.
Tânia recua para a direita de cena. Ivo e Mónica continuam imóveis
Cena 13A – Pausa de reenquadramento dos factos.
Nuno – Senhoras e senhores, vai seguindo a história ao ritmo que as historias tem.
Vasco – E cada uma tem o seu ritmo, a sua urgência de ser contada.
Pedro
– Ficam talvez esquecidos, pequenos pormenores que, por serem de
somenos importância, não dão os narradores a devida importância
Nuno
– Facto que não teria nenhum mal se esse pequeno facto não baralha-se
factos, deixando crescer no público insidiosa duvida que lhe impede o
justo raciocínio.
Vasco – E como podereis senhores
avaliar toda a justeza dos acontecimentos narrados se não expusermos
perante vós todas os cambiantes morais que dão cor a este drama.
Pedro – Falemos pois do presunto, senhoras e senhores.
Nuno – O apetitoso presunto.
Vasco – Coxa decepada a porco, salgada ainda crua e que por processo lento de fumeiro se torna iguaria muito apreciada.
Nuno – Mas por certo todos sabereis como fazer um bom presunto e mais certos estamos que todos sabereis aprecia-lo,
Pedro
– A gula, pecado capital contra o qual Deus nos avisou. Peca por gula,
também, o que procura iguarias finas, e requintas nos prazeres do
paladar; e até, quem repisa, a toda hora, na conversa, esses tópicos. E a
Deus isso não apraz. Não há pecados menores.
Nuno – A sardinha a quem é de sardinha e apenas petinga a quem mais não alcança.
Pedro – Porque o pecado é desejar.
Nuno – E a gula mais não é que porta aberta a outros pecados.
Vasco – Passagem à perdição, ao crime. Ao enredo da mentira.
Pedro – O pecado é uma vereda ingreme, perdendo o equilíbrio é o abismo que nos espera. E Deus vê tudo.
Nuno – Não perdoa
Vasco – Apenas os penitentes…
Pedro
– Os para sempre penitentes, que arrastam as grilhetas do passado,
poderão talvez esgueirar-se por entre os portões do céu.
Ivo desiste e sai de palco
Nuno – Gentil público, que sobre nós continuem caindo as suaves graças das musas
Andam os barcos
Nadando no mar
E vão os barcos
Onde o vento os levar
E os barcos andado
Do ar fazem vento
Vento que soprando
Faz mais barcos andar
Começando o vento
Ninguém o pode parar
Nem mesmo um lamento
O consegue abrandar
Cena 14 – A descoberta do roubo
Oração da mãe
Tânia - Peço Deus
Clemencia perdão.
Dá-lhe a mão que está perdida
Leva a vida toda errada.
Anda enganada
Sem saber
O que fazer
Sem perceber
Que nesta vida
Entre o deve e o haver
Entre o querer e o ter
Fica um mundo
De desejos
Sem sentido
Sem prazer.
Não mais sofrer
Não pode ser.
Todos pagámos.
Pedro
- A mãe depois de chorar lágrimas de sangue, e de ter pedido a Deus que
pela sua infinita misericórdia desse um jeitinho à vida errada de sua
filha, foi ver debaixo do enxergão se acharia um pé de uma meia que lá
tinha com 3 moedas, restos de todas as economias de sua vida, e que ela
reservava para mandar dizer 60 missas por sua alma e 60 por alma do seu
marido, de esmola 120 reis cada uma.
Vasco - Mas qual
seria o seu espanto e aflição quando não achou o seu dinheirinho?
Primeiramente deu um grito do fundo do coração, e depois perdeu os
sentidos e caiu. Este dinheiro já a filha lho tinha roubado para o dar
ao seu amante.
Cena 15 – O confronto
Nuno - Quando Maria José entrou e viu assim
desfalecida sua mãe, e a cama mexida, conheceu logo que sua mãe já sabia
do roubo, e que havia de berrar; e assim esteve logo ali para a matar.
Colocam a Mónica no local
Vasco - A velha tornou a si, e quando viu diante sua malvada filha começou com grandes gritos
Tânia – O meu dinheiro Maria? Onde está o meu dinheirinho? Maria? Esse dinheiro era a minha salvação e da alma de teu pai!
Mónica é fantoche manipulada à bruta pelos narradores e pela mãe.
Cena 16 – O regedor
Pedro
- A filha primeiro quis fazê-la calar à força pondo-lhe a mão na boca;
mas vendo que nada conseguia, foi-se ter com António Ferreira do Sul,
regedor da freguesia de Santa Engrácia,
Mónica – Senhor regedor meta a minha mãe no hospital, está doida. Berra que a querem matar.
Nuno – Vai, que eu me irei informar do estado de tua mãe e lhe darei providências.
Vasco
– Pais de família, louco são os que, cegos pelos seus desejos mais
torpes, tentam que a realidade se molde às suas ambições. A infame Maria
José ficou feliz com o seu cínico engodo.
Pedro –
Podem enganar a lei dos homens, mas Deus vê tudo. E vê de tudo. E é
infinita a sua bondade, é infinita a sua misericórdia. Para o justo.
Porque também é infinita a sua vontade de castigar os ímpios, os
pecadores que se afastam do caminho que para nós trilhou. Chorai pais de
família que o destino de Matilde está já escrito a fogo e sangue. Com
seu sangue e com o fogo que corrói as entranhas da sua filha impiedosa
Cena 17 – Engodo
Mónica – Mãe, amanhã lhe trarei o seu dinheiro.
Pedro
- A infeliz desgraçada velha. Com isso sossegou alguma coisa, mas ó
desgraça! ó dor! ó crime sem igual! A maldita e condenada filha já a
estas horas fazia de conta que às mesmas horas do dia seguinte teria
matado sua mãe!
Nuno - Oh! Meu Deus! Dai-me forças para poder continuar e enxugai-me
estas lágrimas dos olhos!
Cena 18 - Reflexão
Vasco - Filhas que amais vossas mães, tremei, tremei de horror!
Nuno- Mães que amais vossas filhas, chorai, chorai de compaixão!
Pedro
- Pais de família, fazei por dar uma educação a vossos filhos, que não
deixe remorso na hora tremenda em que vossas almas estiverem para voar à
presença de Jesus Cristo!
Cena 19 - O crime
Nuno
- Em toda a noite daquele dia, Maria não apareceu em casa, foi onde
estava o José Maria e pediu-lhe ferros para matar sua mãe. O malvado
deu-lhe duas facas de sapateiro, e lá lhe disse que fizesse aquilo que
vou contar, se Deus Nosso Senhor mo permitir.
Eram dez horas do dia 11 de Setembro, quando Maria entrou em casa.
Tânia – Trazes o meu dinheiro
Mónica – Não tarda que venha, mãe.
Sentam-se as duas A mãe coloca a cabeça no regaço da filha para que esta a cate. A mãe sente as facas no bolso.
Tânia - Que trazes no bolso. Maria?
Mónica - São duas facas, minha mãe.
Tânia - Para que andas de faca?
Mónica - São do José Maria que mas deu para eu mandar amolar ao barbeiro.
Mónica dá uma facada na mãe
Tânia
- Maria, porque me matas? Maria minha filha, tiveste coração de
enterrar uma faca no peito de tua mãe! Tiveste coração de rasgar aquelas
entranhas que te geraram! Maria, porque me matas? Que mal te fiz eu,
minha filha, para me dares esta facada por onde me foge a vida? E se
tinhas tenções de me matar, porque me não mandaste confessar, ou ao
menos fazer o acto de contrição? Ah Maria, Maria, que tens de dar contas
a Deus pela minha e pela tua alma!
Tânia - Meu Pai do Céu... perdoai-me.
Cena 20 - Escondendo o crime em bocados pequeninos
Pedro
- Cobre-te de luto ó natureza! Chora no Céu Virgem Maria que também
fostes mãe carinhosa! Chorai aves do ar que criais os vossos filhos
debaixo das vossas asas! Chorai que aí caiu uma boa mãe morta com duas
facadas aos pés duma filha já condenada! Depois de morta sua mãe, Maria
José com a maior presença de espírito e ânimo de carrasco com a mesma
faca começou a cortar-lhe a cabeça.
Vasco - E vendo que
não podia arredondar o osso, foi cortar com segunda faca, e como ainda
não pudesse, começou a dar-lhe golpes de machada, até que de todo lhe
despegou a cabeça do pescoço.
Depois cortou-lhe as orelhas e o nariz e os beiços e deu-lhe mais de
vinte golpes na cara, e queimou-lhe o cabelo.
Nuno -
Depois levantou um tijolo do lar e enterrou os pedaços da cara e da
cabeça.
Depois cortou-lhe as pernas e as mãos. E a noite embuçou-se num capote e
pegou no tronco da mãe e foi pô-lo nas obras dc Santa Engrácia.
Pedro - Tomou a casa, pegou nas pernas e nas mãos e foi pô-las na travessa das Mónicas.
Vasco
- E depois voltando para casa pôs-se a lavar a roupa ensanguentada da
mãe e deitou-se nos mesmos Iençois onde sua mãe dormia com ela dois dias
antes e com a cabeça dessa mesma mãe enterrada aos pés da cama.
Cena 21 - Interrogatório
Pedro
- No dia seguinte saiu de casa e foi-se pôr a ver o corpo e as pernas
de sua mãe entre aquela multidão de pessoas que lastimavam aquele
acontecimento. Aconteceu estar aí o mesmo regedor a quem ela pedira que
mandasse meter sua mãe no hospital dos doidos. O que o regedor por uma
inspiração do céu mandou prender aquela mulher,
Nuno – Onde está a tua mãe?
Mónica – Não sei.
Nuno – Onde está a tua mãe?
Mónica – Não sei.
Nuno – Onde está a tua mãe?
Mónica – Não sei.
Vasco - Mas no quintal da mesma casa estavam a enxugar algumas roupas tintas de sangue. E escavaram o chão da casa.
Nuno – É esta a cabeça da tua mãe?
Maria – Sim, é esta a cabeça da minha mãe.
Cena 22 – Conclusão
Vasco
- Passou-se a um processo, e a ré foi condenada no dia 5 de Novembro a
sofrer morte natural para sempre na forca, que se há-de levantar no
campo de Santa Clara, passando por aqueles lugares onde foi pôr os
pedaços do corpo de sua mãe.
Nuno - Aqui tendes - Ó povos! – O maior crime que viu o mundo, praticado em Lisboa no ano de 1848!
Pedro
- Estes atentados contra Deus, esta guerra de irmãos com irmãos, estes
acontecimentos de filhos matarem pais, e esses sinais que nos aparecem
no céu, tudo indica que o fim do mundo está chegado.
Cena 23 – O peditório
Vasco – E assim, senhoras e senhores, acaba a história contada.
Ivo – E acaba também a história que não foi contada.
Pedro – E todas as outras histórias: as histórias que foram escutadas.
Mónica
– Porque, senhoras e senhoras, por cada história contada, luz que
ilumina, há uma outra, sombra projectada da primeira: a historia que não
se quer contar.
Tânia – E por entre a luz e as
sombras, surgem todas as outras histórias, as que mais interessam, as
que cada um de vossas excelências achou por conveniente escutar.
Ivo
– E senhoras e senhores, nós somos apenas fracos bichinhos da terra…
(tira o chapéu em sinal de respeito, os outros imitam-no)
Mónica – Humildes servidores de vossas excelências.
Pedro – Pobres penitentes indignos da vossa misericórdia
Vasco – E que mais não podemos desejar que a noite tenha sido do vosso agrado.
Tânia – Que tenham sido benevolentes as musas.
Mónica – Que tenham inspirado o nosso verbo e o nosso gesto
Pedro – E que vossas senhorias se tenham emocionado e chorado.
Tânia – E agora é chegada a hora
Vasco – A hora que sempre chega
Repete a valsa enquanto passam o chapéu pelo público
com Igor Gandra (Teatro de Ferro) e Ricardo Alves (Teatro da Palmilha Dentada)
PÚBLICOS E PÚBLICOS-ALVO
Num
momento em que se discute tanto os cortes na Cultura, as Comédias do
Minho atiram ao alvo dos públicos. O que é trabalhar para públicos
infanto-juvenis, "públicos em potência", "público em geral", o que é a
"assustadora proximidade do público"?
Expressões debatidas em mais um encontro informal com criadores em residência no Vale do Minho.
Recuperando
a memória da conversa de dia 6 de Fevereiro na Casa da Cultura de
Melgaço, seguem alguns momentos dos convidados
Sobre a Residência Artística com 16 colaboradores locais do Projeto Pedagógico das CdM...
Igor Gandra e Carla Veloso | Teatro de Ferro
Estes dias foram organizados num modelo híbrido entre a acção de
formação e residência de criação. Ao longo destas sessões de trabalho,
percorremos dois caminhos distintos que deverão levar ao mesmo destino – a
criação de um pequeno espectáculo. A nossa tarefa principal foi nutrir os
participantes de um conjunto de noções técnicas ao nível da manipulação de objetos,
matérias e marionetas, estas foram cruzados com outras práticas, apresentadas
como desafios criativos propostos a todos e a cada um dos participantes.
A ideia de metamorfose, de transformação, de passagem de um
estado a outro norteou as escolhas que fizemos. Sendo certo que o
universo da animação da matéria é extremamente vasto, procurámos deixar,
através deste conjunto de experiências, algumas ideias sobre possibilidades
alternativas no trabalho com o público, particularmente com o público
infanto-juvenil. Desejamos também que este trabalho possa ser inspirador para
outras atividades.
(...)
Temos sido desafiados a colaborar com o coletivo CdM desde 2007 e
já percorremos os eixos principais da atividade da companhia. Este projeto
pôs-nos em contacto com uma realidade para a qual talvez não estivéssemos tão
despertos – a importância desta rede de parcerias (e de cumplicidades, no
melhor sentido da palavra) que se formou entre a companhia e as diversas
estruturas municipais de serviço público na cultura ao nível dos cinco concelhos.
-
Vítima anónima, comparsa no início só se torna personagem a partir da sua
captura
Música e ambiente
com tom sinistro.
Entra
público. Vítima e João Miguel Vaz Frio entram mesclados e em conjunto com o
público. Um restaurante. Ao fundo, perto da entrada da copa, uma bancada de
cozinha móvel. Mesas com toalhas de linho e candelabros com velas. As pessoas
vão-se sentando. João Miguel Vaz Frio deambula pelo espaço e tira notas no seu
caderninho de apontamentos. Existe uma mesa com um letreiro que diz ‘reservado’
onde acaba por se sentar o crítico.
Passa
Yakusa lentamente sem falar, só olhando.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se
para YAKUSA mas sem olhar para ele):
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se a um cliente): Já foi
atendido?
CLIENTE: Não, não.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Há quanto
tempo está à espera?
CLIENTE: Há cinco minutos.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E a senhora?
CLIENTE: Um quarto de hora.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Um quarto de
hora, que vergonha!
Pára
a música. Toca o telefone de João Miguel Vaz Frio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se aos restantes clientes): Com
a vossa licença (atende).
GOMES DE SÁ: Boa noite.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Boa noite.
GOMES DE SÁ: Gomes de Sá,
restaurante Passe-Vite.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Eu estou no
restaurante Passe-Vite.
GOMES DE SÁ: Você já aí está?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim, eu fiz
uma reserva para jantar.
GOMES DE SÁ: Muito bem. Ah, sim, é
para jantar!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim, pois,
para jantar. Estou com alguma pressa.
GOMES DE SÁ: Tem pressa. Porquê?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tenho um
compromisso.
GOMES DE SÁ: Bom. Tem um compromisso
às dez e meia?...
É aqui perto?...É longe?... E demora muito tempo?... Se calhar,
vai ter com a família ou tem um compromisso com uma amiga... ou, então, tem só
alguma pressa para jantar. Se calhar, prefere jantar depois.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Depois? A que
horas?
GOMES DE SÁ: Depois do compromisso.
Lá para as onze e meia… meia-noite. Será?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tão tarde?
GOMES DE SÁ: Uma da manhã… duas!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Para jantar?!
GOMES DE SÁ: Sim, hoje teremos um menu
degustativo tardio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Mas repare que,
se agora estou com uma larica, a essa hora estarei esfomeado.
GOMES DE SÁ: Com certeza será um bom
sinal! Por ventura, desejará agora enganar o estômago. Mordiscar qualquer
coisa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Enganar… isso
não combina bem com um restaurante de classe.
GOMES DE SÁ: Forrar o estômago será
mais indicado.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E o que é que
tem para forrar o estômago?
GOMES DE SÁ: Vamos então tratar
disso. Deixe-se ficar
(Ao
telefone:sons de materiais a rasgar,
vocais e baque.)
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Está? Está?
Volta
a ouvir-se música na sala (Nature’s Wrath – The Budos Band) e o serviço de
mesas começa. São colocados em sequência os pratos por Yakusa, os guardanapos
por Juanita, os copos por Marie e as velas são acesas por Gaby.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (para cada um
dos elementos da equipa, que nunca lhe respondem, tornando-se cada vez mais
irritado): Traga-me a ementa… Faça-me o favor de trazer a ementa… Fala
português?… Parlez-vous Français?...
Já pedi a ementa! Quantas vezes é necessário pedir a ementa? Ementa, ementa,
ementa, ementa, ementa, ementa, ementa! O cardápio! Por amor de Deus!... Este
prato está sujo! (Gaby troca o prato por
outro de outra mesa). Ah! Alguém finalmente! Mas este também está sujo!
A equipa coloca no peito dos clientes os
guardanapos após uma pequena coreografia com os primeiros quatro guardanapos
que são desdobrados. A música pára de tocar.
Yakusa traz uma cesta de pão e começa a
distribuir perguntando em japonês se as pessoas querem pão. Começa-se a escutar
vozes que cantam ‘pão, pão, pão’ vindas da copa. Yakusa escuta-as expressivamente
e começa a cantar.
[1º
número de variedades: Música do pão]
YAKUSA
(canta em japonês, o que traduzido significa): Grandes e admiráveis são as tuas
obras, Senhor Deus todo-poderoso. Justos e verdadeiros são os teus caminhos – ó
Rei das Nações! Senhor, quem não reverenciará o teu nome? Quem não lhe dará
glória? Porque só Tu és Santo! Todas as nações virão prostrar-se diante de Ti,
pois as tuas justas sentenças foram promulgadas!
GABY,
JUANITA e MARIE (no refrão): Pão com olhos, queijo sem olhos
e vinho que espirre para os olhos. Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que
espirre para os olhos. (Yakusa canta parte
da frase em japonês e em resposta a equipa continua)…. abre o apetite. E
consentido é um acepipe. Mais vale pão duro do que figo maduro.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Podiam trazer
patê, se faz favor? Um queijo, um patê, quer um quer o outro, o que tiver…
A
equipa termina a coreografia que acompanhou a Música do Pão, numa imagem final.
Desfaz e mantém-se em linha recta.Em voz-off, ouve-se uma música heróica
(Hercules – The Legendary Journeys):
GOMES
DE SÁ (apresentando-se a si mesmo em tom
eufórico): Ladies and gentlemen! Mesdames
et messiers! Senhoras e senhores. Convosco prémio revelação 2001: Gomes de
Sá!
(Palmas)
GOMES
DE SÁ (já na sala): Obrigado,
obrigado. Boa noite, boa noite… Sejam bem-vindos ao Passe-Vite e, especialmente
hoje, dia em que festejamos o nosso 12º aniversário. Vejo muitas caras
conhecidas, outras nem tanto… e estou bastante comovido por partilharem este
momento convosco.
Para este dia tão especial,
temos um menu degustativo tardio, elaborado pelo nosso chef, para quem peço uma salva de palmas, grande aplauso,
Yakusaaaaaaaa! Acompanhado pela sua equipa: Mary, Gabi e Juanita. (Alguém bate palmas) Pode ser (referindo-se às palmas dirigidas às ajudantes).
Este nosso 12º aniversário
reserva-nos uma noite de variedades para disfrutar durante a degustação
apoteótica da nossa ceia. E para iniciar esta magnífica noite, senhoras e
senhores, uma das sete maravilhas da gastronomia nacional, convosco: o caldo
verde!
O serviço inicia-se ao som de Mulath Astake -
Yermo Sew.
[Shot de caldo verde servido às mesas pela
equipa de cozinha]
Enquanto o apreciam, vou circular pelas mesas para vos
dar conselhos e sugestões de moda e arte, como é meu hábito.
GOMES
DE SÁ (dirigindo-se a um cliente):
Que cor incrível! Recorda-me o azul do mar de um quadro de … que conheci em
novo.
Gomes de Sá contacta com pessoas de mais duas ou três
mesas. Ao falar, apalpa os clientes nos ombros e braços. Toca-lhes também com
os dedos na face e nariz. Aproxima-se da mesa da vítima.
GOMES
DE SÁ (dirigindo-se à vítima): Olá,
boa noite! É a sua primeira vez, não é?
VÍTIMA:
É, sim.
GOMES
DE SÁ: Prazer! (pega-lhe na mão).
Gomes de Sá ao seu dispor! Está a gostar? (vítima
anui) Espero que sim. Não pude deixar de reparar no seu vestido: é
incrível! Importa-se de dar uma voltinha?
VÍTIMA:
Quer que me levante?
GOMES
DE SÁ: Sim. Faz-me lembrar um quadro de Matisse: as noivas. Esta pérola é
divinal!
A Vítima levanta-se, dá uma volta sobre si, segurando
na mão de Gomes de Sá e volta a sentar-se. Gomes de Sá continua a circular pela
sala e chega à mesa do crítico.
GOMES DE SÁ: Boa noite, Gomes de Sá
ao seu dispor. Marchant do
restaurante Passe-Vite: a arte de satisfazer o seu apetite. Está tudo do seu
agrado?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (mostrando-lhe o telemóvel): Não.
GOMES DE SÁ: Não?...
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Já estou à
espera há quinze minutos e ainda não fui atendido.
GOMES DE SÁ: A espera é o nosso amuse bouche para lhe divertir a boca.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Perde a piada
quando se tem pressa.
GOMES DE SÁ: Mais um?! Se veio sem
tempo, se calhar, fica apertado.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Apertado!
GOMES DE SÁ (desinteressa-se e parte para outras mesas): Apertado para degustar
o nosso menu.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Já tivemos
esta conversa antes, sabe?
GOMES DE SÁ: Já nos conhecemos?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim. Falámos
ao telemóvel.
GOMES DE SÁ: Pois. Sabe, eu falo com
tanta gente ao telemóvel…
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Acabámos de
falar ao telefone.
GOMES DE SÁ (volta à mesa do crítico): Ah! O senhor comprometido.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: O senhor
Miguel Vaz Frio.
GOMES DE SÁ: Senhor Miguel Vaz
Frio... o romancista, não! O escritor... o jornalista, o compositor. Adoro a
sua opereta em lá menor...
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Crítico.
GOMES DE SÁ: Crítico de arte Miguel
Vaz Frio! Adoro a sua abordagem ao contemporâneo!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Crítico
gastronómico.
GOMES DE SÁ: Crítico gastronómico...
Então Kandinski não lhe diz nada... Muito bem... Crítico gastronómico com
pressa... Forrar... Vermeer? Também
nada...
Gomes
de Sá pega no letreiro que diz ‘reservado’ e olha em volta. Volta a fitar a
vítima e dirige-se novamente à sua mesa.
GOMES DE SÁ: Olá novamente!
VÍTIMA: Olá.
GOMES DE SÁ: Continua tudo bem?
VÍTIMA: Sim, mas… (olhando para o letreiro) esta mesa está
cheia.
GOMES DE SÁ: Pois… (continua a baixar o letreiro para o poisar
naquela mesa).
VÍTIMA: Mas eu já estou aqui!
GOMES DE SÁ: Sim e agora está
reservada.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
corredor vazio e corredor com Gomes de Sá]
A
imagem do que poderia ser um vídeo de vigilância de um corredor de cave começa
a ser emitida e Gomes de Sá fica apreensivo e sai. Vemos ainda Gomes de Sá no
víde,o a percorrer o corredor a espreitar ao fundo com expressão preocupada.
Fica alguns momentos a escutar e volta a percorrer o corredor.
[2º
número de variedades: Receitas e Segredos Passe-Vite]
Escuta-se a introdução de uma música (Mulath
Astake - Chifara). Quando o ritmo aumenta, entra Marie e coloca-se por detrás
da bancada móvel de cozinha.
MARIE:
Boa noite, hoje, nesta altura tão especial, cederam-me a oportunidade de vos
mostrar algumas das receitas e segredos Passe-Vite! Por isso, vou começar por
uma receita muito simples… Sopa da Pedra! Necessito de uma pedra, mas não de
uma pedra qualquer: tem de ser uma pedra redondinha, branquinha e limadinha e o
que eu tenho aqui é um calhau! Vou pedir, portanto, ajuda a um voluntário. O
senhor aí ao fundo de casaco castanho (dirige-se
a João Miguel Vaz Frio que se tinha levantado e caminhava no sentido da porta
de saída), queira ajudar-me! (Ele
acede ao pedido). Obrigada.
O senhor pegue na pedra, coloque
a pedra no recipiente (Marie retira o
recipiente de baixo da bancada) e vá banhando assim (Marie demonstra como deve ser banhada a pedra), até que a erosão se
confirme o que é capaz de demorar cerca de 42 meses. Enquanto o nosso amigo nos
ajuda com a Sopa da Pedra, vou continuando a revelar-vos mais segredos.
Passemos, então, para a receita
seguinte que é exactamente uma bucha. (Marie
retira dois pães debaixo da bancada e duas fatias de queijo enquanto explica)
Duas fatias de queijo… duas fatias de pão… mas não de um pão qualquer, tem de
ser pão que o Diabo amassou. Modo de preparação: juntamos pão, pão (coloca os pães um por cima do outro) e
as fatias de queijo (coloca as fatias de
queijo por cima dos pães) e temos: pão, pão, queijo, queijo – a bucha do
desejo.
E agora tenho o prazer de vos
apresentar uma receita que tem passado de geração em geração na minha família.
(Marie retira debaixo da bancada um copo
com arroz, um saco de açúcar, um recipiente para fazer a mistura e vai
explicando) Precisamos de arroz, açúcar e um recipiente. Juntamos arroz, açúcar
e mexemos bem. Temos arroz doce!
Se nada disto vos aprouver,
então, eu tenho a solução – sim porque eu tenho a solução para tudo! – Fome! O
melhor tempero… (polvilha todos os
restantes pratos com o tempero) é a fome!
Boa noite e parabéns Passe-Vite!
Marie repara que João Miguel Vaz Frio continuou não só a
banhar a pedra, como está num transe de dança com a mesma. Deixa-o continuar
naquele estado.
Gomes de Sá volta à sala para
apresentar o 1º prato e, enquanto o faz, vai observando admirado João Miguel
Vaz Frio, que não pára de dançar com a pedra e não o escuta no seu discurso.
GOMES
DE SÁ: Espero que o caldo verde tenha sido do vosso agrado. Venho agora
apresentar-vos o nosso 1º prato, uma especialidade do nosso chef Yakusa: Mil folhas de aves. É um
folhado de aves, no fundo. De alheira. Dobra-se a massa, estende-se a massa,
dobra-se a massa, estende-se a massa, coloca-se manteiga lá dentro… e tem
alheira lá dentro!
[1º
prato – Livro de Yakusa (folhado de alheira) servido pelas ajudantes de
cozinha. Yakusa espera para servir João Miguel Vaz Frio]
Gomes de Sá volta a atenção para o crítico e
começa a dançar com ele, mas sem o tocar, imitando-o. Mantém a dança por alguns
minutos, até que Gomes de Sá lhe tapa os ouvidos e deixamos de escutar a
música. João Miguel Vaz Frio volta a si.
GOMES
DE SÁ: Aqui tem o mil-folhas que anunciei ainda agora. Não sei se estava
connosco.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Qual é a estória deste prato?
GOMES
DE SÁ: Abre-se, dobra-se, estende-se, dobra-se… É um folhado… de aves. (O crítico pega na pedra e permanece sempre
com ela). Pegue nele e coma--o: há-de azedar-lhe no estômago, mas na boca
vai saber-lhe a mel (o crítico prova o
folhado).
João Miguel Vaz frio cospe para o guardanapo
o que acabou de provar.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (falando e abrindo o seu
caderno e começando a anotar): É a primeira vez que faz este prato?
(dirigindo-se para Yakusa).
GOMES
DE SÁ: Não, não. Este prato é confeccionado pelo Yakusa há mais de dez anos.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): As pessoas gostam deste prato?
GOMES
DE SÁ: É um prato muito apreciado.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): Os seus pais já provaram?
GOMES
DE SÁ: Sim, claro!
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): Tem o amor dos seus pais?
GOMES
DE SÁ: O Yakusa é um filho muito amado!
Yakusa, que está por detrás do ombro esquerdo de João
Miguel Vaz Frio, faz uma rápida careta com a língua de fora e sai para a copa.
GOMES
DE SÁ: É preciso que continue a profetizar contra muitos povos, nações, línguas
e reinos… (vai-se afastando do crítico e dirige-se ao microfone).
E, agora, para continuarem a
disfrutar deste prato, mais um número: O Frango Sinatra! Palmas meus senhores!
[3º
número de variedades: Frango Sinatra (Frank Sinatra – Come Fly With Me): um
frango usado como marioneta por cima da bancada de cozinha móvel faz um dueto enamorado
de sapateado com Juanita]
[Vídeo
Templo na Arca Frigorífica: vê-se Gomes de Sá a abrir uma arca frigorífica e a
rezar para um altar que tem montado no seu interior]
[4º
número de variedades: Estória dos Alhos e Bugalhos]
Entra Gaby, pega no microfone e dirige-se aos
clientes.
GABY:
Boa noite, senhoras e senhores. Eu vim aqui contar uma estória verídica, que
mudou para sempre a História da Culinária Contemporânea. Alguém aqui sabe por que
é que não se misturam alhos com bugalhos? (Não
deixa ninguém responder) Não. Eu vou contar.
Era um casal de um alho e um
bugalho, um casal normal que vocês vêem todos os dias e o bugalho foi para a
Guerra dos Bugalhões combater bugalhinhos. O alho ficou em casa, durante cerca
de três anos, e, nesse tempo, conheceu uma cebola – uma cebola do campo com uma
casquinha fácil de tirar. Entretanto, vem o bugalho da guerra e, quando chega a
casa, dá de caras com o alho e a cebola numa banheira de caldo Knorr a beberem
um copo de azeite. O bugalho, ao ver aquilo com os seus olhos esbugalhados,
diz: ‘Qu’est-ce que c’est ça? Você já
não me quer, alho? Que alhada vem a ser esta?’ E o alho também surpreendido de
ver ali o bugalho diz: ‘Querido bugalho, ne
c’est pas o que parrece! Eu sempre que estou com a cebola choro só de
pensar em ti! Tu sabes que ainda sou o teu dente- -de-alho e você a minha
angiosperma. A cebola, ao ouvir estas palavras não tão carinhosas para com ela,
saca de uma pistola e… pum! Mata o alho. E pum! Mata também o bugalho. E faz um
estrugido, um estrugido que depois colocou no frigorífico, porque todos sabemos
que a vingança é um prato que se serve frio, e deu-o às suas amigas cebolinhas.
Era um estrugido que sabia muito mal, porque tinha o sabor da traição.
E é por isso que não se pode
misturar alhos com bugalhos. Boa noite.
Gaby começa a dirigir-se para a copa e é
interrompida por João Miguel Vaz Frio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Então como
explica que cebola e alho combinem tão bem, se consubstanciam uma infidelidade?
GABY: O estrugido proibido é o mais
apetecido.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: O estrugido
proibido não devia conter maçã?
GABY: Une affair não se quer doce.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: É esse o sabor
do casamento?
GABY: Doce aos três, adstringente
aos sete e carbonate aos doze.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E o da saída?
(levanta-se e dirigindo-se para a porta
de saída)
GABY: Com concasseé.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: En gelée.
GABY: Depuis de gratinée.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Gratin satin.
GABY: Vol-au-vent.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: É esse o sabor
da morte?
…
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Figo.
GABY: Passa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Fermento.
GABY: Farinha.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Panado.
GABY: Tártaro.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Velauté.
GABY: Brie.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Ginja.
GABY: Cereja.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Mirtilo.
GABY: Marmelo.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Melão.
GABY: Abacaxi.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Goiaba.
GABY: Maracujá.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Abacate.
GABY: Anona.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Açaí.
GABY: Ameixa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tomarei nota.
Escuta-se
música (marcha fúnebre de Beethoven).
[2º
prato (crepes) – preparação por Yakusa ao vivo com recitações em japonês,
servido pelas ajudantes de comida à sala]
A meio do processo, entra Gomes de Sá e
dirige-se ao microfone com a Bíblia na mão.
GOMES
DE SÁ, declamado quase gritado: Lança
a tua foice, pois chegou a hora de ceifar porque a seara da terra já está
madura. Pega na tua foice afiada e vindima os cachos da vinha da terra, porque
as uvas já estão maduras. O que vão desfrutar agora é exactamente um crepe...
Uma nuvem… Um enrolado…
[BLACKOUT]
Escuta-se música (Angelo Badalamenti - Andrey’s Dance). A equipa de
cozinha movimenta-se em câmara lenta e dirige-se para a Vítima numa sequência
que tem por objectivo deixar derramar água sobre ela como se fosse por
acidente, a qual inclui Juanita a simular o parto.
MARIE
(em câmara lenta para a vítima):
Prefere água fresca ou natural?
VÍTIMA:
Pode ser natural.
É derramada água sobre a vítima.
VÍTIMA:
Ai! Está fria! Molharam-me toda!
EQUIPA,
quase em uníssono: Ah! Oh! Desculpe.
Venha connosco, tem que se limpar.
GOMES
DE SÁ (aproxima-se): Peço imensa
desculpa pelo que aconteceu. Vá limpar-se lá dentro. (Afasta-se e vai na direcção do crítico que apresenta uma expressão
indignada). Ó, despejaram água sobre a senhora. Às vezes acontece…
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Pareceu de propósito. Despejaram água de propósito na senhora.
Vou-me embora, já chega!
GOMES
DE SÁ: Não foi nada! Tenha calma. Deixe-se ficar!
Conversam. Vão-se dirigindo para a porta.
Permanecem lá uns minutos. Voltam. Gomes de Sá vem com uma expressão de
deslumbramento, quase infantil. Conversam, dirigindo-se devagar para a mesa do
crítico.
GOMES
DE SÁ (vem com a Bíblia na mão): … no
Egipto eles encontraram tudo o que necessitavam. Sentiram-se plenos! (…) No
Passe-Vite não se inventa nada, já tudo foi inventado. Fique mais um pouco na
nossa companhia. Tenho a certeza de que será bastante agradável!
Deixa João Miguel Vaz Frio e aproxima-se do
microfone:
GOMES
DE SÁ: Enquanto continuam a fruir do nosso enrolado, gostava de partilhar
convosco mais uma leitura bíblica sobre a Brevidade da Vida (lendo da Bíblia). Eu disse a mim
próprio: ‘vigiarei sobre a minha conduta, para não pecar com a língua;
refrearei a minha boca, enquanto o ímpio estiver diante de mim’. Fiquei calado e
em silêncio, mas sem proveito, porque se agravou a minha dor. O coração
ardia-me no peito; de tanto pensar nisto, esse fogo avivava-se e deixei a minha
língua dizer: ‘Senhor, dá-me a conhecer o meu fim e o número dos meus dias,
para que veja como sou efémero. De poucos palmos fizeste os meus dias; diante
de ti a minha existência é como nada; o homem não é mais do que um sopro! Ele
passa como simples sombra! É em vão que se agita: amontoa riquezas e não sabe
para quem ficam. Agora, Senhor, que posso eu esperar? A minha esperança está em
ti. Livra-me de todas as minhas faltas; não deixeis que o insensato se ria de
mim. Fiquei calado, sem abrir a boca, porque és Tu quem intervém. Afasta de mim
os teus castigos; desfaleço ao peso da tua mão. Tu corriges o homem, castigando
a sua culpa, e, como a traça, destróis o que ele mais estima. Na verdade, o
homem é apenas um sopro. Senhor, ouve a minha oração, escuta o meu lamento; não
fiques insensível às minhas lágrimas. Diante de ti sou como um estrangeiro, um
hóspede, como os meus antepassados. Desvia de mim os olhos, para que eu possa
respirar; antes que tenha de partir, e acabe a minha existência’.
E agora peço um grande aplauso para o momento alto desta
noite e de todas as festas de aniversário: Nita!
[5º
e último número de variedades a Canção de Aniversário (Happy Birthday – jazz
version): Gomes de Sá força Juanita a cantá-la]
Gomes de Sá retira o casaco de Juanita e
expõe a sua barriga de grávida. Juanita canta com voz embargada e chora no
final. Juanita apanha o casaco do chão e sai o mais rápido que consegue para a
copa.
GOMES
DE SÁ (no final): Obrigado! Obrigado!
Foi um prazer!
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (com expressão infantil e
batendo palmas com as mãos juntas): Bolo! Bolo! Bolo! (muda de expressão, para uma mais melancólica). Sr. Gomes de Sá, já
posso ir para casa agora?
[Equipa
de cozinha transfigura-se nos Quatro cavaleiros do Apocalipse]
[1º
Cavaleiro: Gaby]
Gabi entra com um carro onde tem uma tábua de
cozinha com vegetais. Segredando frases que vão aumentando de tom. Desloca-se
assim até ao fundo da sala, onde se encontra um candeeiro.
GABY (falando já
alto): Foram resgatados como primícias da humanidade por Deus e pelo
Cordeiro. (Pega no pepino). Pepininho
com um toque tão suave e masculino (pega
na faca e arrasta-a ao longo do pepino). Pepininho é a tua amiga (corta sonoramente). Descansa pepininho.
Cenourinha (música: Requiem
- Mozart) tão magoada e cicatrizada como quem precisa de carinho, carinho
que só eu sei dar. Sim cenourinha tu sabes que podes contar comigo (corta sonoramente).
Tomatinho tão vermelhinho, tão macio como a minha pele. (Fura-o com a faca). Escorre tomatinho,
deixa-te escorrer, podes escorrer tomatinho, podes escorrer (corta sonoramente). Na sua boca não se
achou mentira. São irrepreensíveis.
Bananinha tão amarela e ingénua como quem pede para as
suas vestes serem tiradas (retira a
casta, e lambe o interior carnudo. Come-o). Estes são os que não se
perverteram com mulheres porque são virgens. Estes são os que seguem o Cordeiro
para toda a parte.
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia ainda sem Gomes de Sá e Vítima]
Amiguinhos, ó não! (Junta
os pedaços cortados dos vegetais, coloca-se de joelhos). Amiguinhos não! Ó
desculpem! Eu não queria fazer isto! Eu não queria fazer isto! Eu não queria
fazer isto! (Grita. Chora). Desculpem
amiguinhos. Desculpem. Vamos ficar juntos para sempre. Amiguinhos! Vamos ficar juntos
para sempre! Amiguinhos! (Flagela-se com
ramos de nabiças).
Gaby mantém-se nessa acção até ao final do
espectáculo. Entretanto, despe a jaleca e vêem-se marcas de feridas nas suas
costas.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
Gomes de Sá arrasta a Vítima]
[2º Cavaleiro: Marie. Vestido branco, venda
nos olhos, mão esquerda constituída de espetos, maçãs são trazidas dentro de um
lenço branco e atiradas ao chão e devoradas, uma e outra vez. Movimenta-se pela
sala, experimentando a mão metálica, sentando-se no banco que arrasta para o
centro da sala, onde cria estátuas vivas. Sai apanhando as maçãs com a outra
mão. Vai-se colocar noutro canto da sala, onde está outro candeeiro e mantém-se
com a mesma acção até ao final]
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia: Gomes de Sá coloca a Vítima]
[3º
Cavaleiro: Juanita. Entra de rompante com um vestido branco mais comprido mas
do mesmo tecido do anterior, todo ensanguentado e uma faca na sua mão. Atira
arroz ao chão. Movimenta-se mais no espaço. Pára. Atira arroz ao chão. Grita.
Faz penitência andando com os joelhos por cima do arroz. Arrasta-se até a um
outro candeeiro num dos cantos da sala. Mantém-se até ao final em agonia,
vergonha e dor]
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia: Gomes de Sá toma o lugar de Cristo]
[4º
Cavaleiro: Yakusa. Veste somente uma cueca de pano branco. Traz dois ramos de
alho-francês e uma melancia consigo. Vai até à bancada de cozinha móvel. Começa
a bater com os ramos de alho-francês na melancia, destruindo-os.
Destapa
a cabeça e mostra a careca. Destrói a melancia. Retira lá de dentro um pó
branco, depois uma língua vermelha. Permanece com ela na boca. Vai-se colocar
no centro da sala num banco que foi deixado por Marie onde cria a estátua viva
do 4º Cavaleiro com a sua flecha]
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (constatando, ainda sentado): Caiu, caiu
a grande Babilónia. (Levanta-se com a
pedra na mão mas mantém-se na mesa). Antro de demónios, guarida de todos os
espíritos imundos; porque, do vinho da sua luxúria, se embriagaram todas as
nações; prostituíram-se com ela os reis da terra, e, com o seu luxo
despudorado, enriqueceram os comerciantes do mundo.
Meu povo, (mais exaltado, começa a movimentar-se nas
sala, sempre com a pedra na mão) saí desta cidade para não serdes cúmplice
do seu crime nem vítima dos seus castigos. Fora os cães, os feiticeiros, os
luxuriosos, os assassinos, os idólatras e todos os que amam e praticam a
fraude. Todos terão como herança o lago ardente do fogo e enxofre (mais baixo). Aí serão atormentados de
dia e de noite, pelos séculos e séculos.
Vem
cá (para uma pessoa numa mesa). Vou
mostrar-te a sentença contra a grande prostituta. Aquela que dizia: ‘Estou
sentada no trono como rainha, não sou viúva e jamais conhecerei o luto’. No
deserto, deserto vi, vi uma mulher, mulher coberta, coberta de nomes, nomes
blasfemos, montada numa besta. A besta odiará a prostituta, vai devorar a sua
carne e destruí-la pelo fogo. Chorarão por ela os que tomaram parte na sua
prostituição e na sua luxúria, quando virem o fumo do braseiro da cidade: Ai
caiu, caiu a grande Babilónia!
A melodia das
cítaras e dos músicos nunca mais se ouvirá dentro de ti. Nunca mais se
encontrará em ti nenhum artista de qualquer arte que seja. A luz da lâmpada
nunca mais brilhará dentro de ti.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
Gomes de Sá transfigurado em Cristo atravessa o corredor]
O
4º Cavaleiro sai do banco e coloca-se no último candeeiro livre da sala.
[BLACKOUT]
Em
voz-off escuta-se: Eu sou o Alfa e o Ómega, o Primeiro
e Último, o Princípio e o Fim. Ao que tiver sede, Eu lhe darei a beber
gratuitamente, da nascente da água da vida. Enxugarei todas as lágrimas dos
seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as
primeiras coisas passaram. Felizes os que lavam as suas vestes, para terem
direito à Árvore da Vida e poderem entrar nas portas da Nova Jerusalém.
[Sobremesa: iogurte grego com frutos
silvestres e biscoitos de milho triturado]
Entra
Gomes de Sá transfigurado em Cristo e serve a sobremesa a João Miguel Vaz Frio.
A equipa de cozinha transfigurada nos quatro cavaleiros do apocalipse serve a
sobremesa aos restantes. A música (Requiem
- Mozart) termina. FIM