OS FILMES
O GUIÃO
Passe-Vite
uma performance gastronómica
Duração: 1h10m
Tempo da acção: noite e serão
Personagens
– por ordem de entrada em cena:
-
João Miguel Vaz Frio, crítico gastronómico
-
Yakusa, chef de cozinha
-
Juanita, equipa de cozinha
-
Marie, equipa de cozinha
-
Gaby, equipa de cozinha
-
Gomes de Sá, dono do restaurante
-
Vítima anónima, comparsa no início só se torna personagem a partir da sua
captura
Música e ambiente
com tom sinistro.
Entra
público. Vítima e João Miguel Vaz Frio entram mesclados e em conjunto com o
público. Um restaurante. Ao fundo, perto da entrada da copa, uma bancada de
cozinha móvel. Mesas com toalhas de linho e candelabros com velas. As pessoas
vão-se sentando. João Miguel Vaz Frio deambula pelo espaço e tira notas no seu
caderninho de apontamentos. Existe uma mesa com um letreiro que diz ‘reservado’
onde acaba por se sentar o crítico.
Passa
Yakusa lentamente sem falar, só olhando.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se
para YAKUSA mas sem olhar para ele):
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se a um cliente): Já foi
atendido?
CLIENTE: Não, não.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Há quanto
tempo está à espera?
CLIENTE: Há cinco minutos.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E a senhora?
CLIENTE: Um quarto de hora.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Um quarto de
hora, que vergonha!
Pára
a música. Toca o telefone de João Miguel Vaz Frio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se aos restantes clientes): Com
a vossa licença (atende).
GOMES DE SÁ: Boa noite.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Boa noite.
GOMES DE SÁ: Gomes de Sá,
restaurante Passe-Vite.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Eu estou no
restaurante Passe-Vite.
GOMES DE SÁ: Você já aí está?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim, eu fiz
uma reserva para jantar.
GOMES DE SÁ: Muito bem. Ah, sim, é
para jantar!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim, pois,
para jantar. Estou com alguma pressa.
GOMES DE SÁ: Tem pressa. Porquê?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tenho um
compromisso.
GOMES DE SÁ: Bom. Tem um compromisso
às dez e meia?...
É aqui perto?... É longe?... E demora muito tempo?... Se calhar,
vai ter com a família ou tem um compromisso com uma amiga... ou, então, tem só
alguma pressa para jantar. Se calhar, prefere jantar depois.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Depois? A que
horas?
GOMES DE SÁ: Depois do compromisso.
Lá para as onze e meia… meia-noite. Será?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tão tarde?
GOMES DE SÁ: Uma da manhã… duas!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Para jantar?!
GOMES DE SÁ: Sim, hoje teremos um menu
degustativo tardio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Mas repare que,
se agora estou com uma larica, a essa hora estarei esfomeado.
GOMES DE SÁ: Com certeza será um bom
sinal! Por ventura, desejará agora enganar o estômago. Mordiscar qualquer
coisa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Enganar… isso
não combina bem com um restaurante de classe.
GOMES DE SÁ: Forrar o estômago será
mais indicado.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E o que é que
tem para forrar o estômago?
GOMES DE SÁ: Vamos então tratar
disso. Deixe-se ficar
(Ao
telefone: sons de materiais a rasgar,
vocais e baque.)
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Está? Está?
Volta
a ouvir-se música na sala (Nature’s Wrath – The Budos Band) e o serviço de
mesas começa. São colocados em sequência os pratos por Yakusa, os guardanapos
por Juanita, os copos por Marie e as velas são acesas por Gaby.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (para cada um
dos elementos da equipa, que nunca lhe respondem, tornando-se cada vez mais
irritado): Traga-me a ementa… Faça-me o favor de trazer a ementa… Fala
português?… Parlez-vous Français?...
Já pedi a ementa! Quantas vezes é necessário pedir a ementa? Ementa, ementa,
ementa, ementa, ementa, ementa, ementa! O cardápio! Por amor de Deus!... Este
prato está sujo! (Gaby troca o prato por
outro de outra mesa). Ah! Alguém finalmente! Mas este também está sujo!
A equipa coloca no peito dos clientes os
guardanapos após uma pequena coreografia com os primeiros quatro guardanapos
que são desdobrados. A música pára de tocar.
Yakusa traz uma cesta de pão e começa a
distribuir perguntando em japonês se as pessoas querem pão. Começa-se a escutar
vozes que cantam ‘pão, pão, pão’ vindas da copa. Yakusa escuta-as expressivamente
e começa a cantar.
[1º
número de variedades: Música do pão]
YAKUSA
(canta em japonês, o que traduzido significa): Grandes e admiráveis são as tuas
obras, Senhor Deus todo-poderoso. Justos e verdadeiros são os teus caminhos – ó
Rei das Nações! Senhor, quem não reverenciará o teu nome? Quem não lhe dará
glória? Porque só Tu és Santo! Todas as nações virão prostrar-se diante de Ti,
pois as tuas justas sentenças foram promulgadas!
GABY,
JUANITA e MARIE (no refrão): Pão com olhos, queijo sem olhos
e vinho que espirre para os olhos. Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que
espirre para os olhos. (Yakusa canta parte
da frase em japonês e em resposta a equipa continua)…. abre o apetite. E
consentido é um acepipe. Mais vale pão duro do que figo maduro.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Podiam trazer
patê, se faz favor? Um queijo, um patê, quer um quer o outro, o que tiver…
A
equipa termina a coreografia que acompanhou a Música do Pão, numa imagem final.
Desfaz e mantém-se em linha recta. Em voz-off, ouve-se uma música heróica
(Hercules – The Legendary Journeys):
GOMES
DE SÁ (apresentando-se a si mesmo em tom
eufórico): Ladies and gentlemen! Mesdames
et messiers! Senhoras e senhores. Convosco prémio revelação 2001: Gomes de
Sá!
(Palmas)
GOMES
DE SÁ (já na sala): Obrigado,
obrigado. Boa noite, boa noite… Sejam bem-vindos ao Passe-Vite e, especialmente
hoje, dia em que festejamos o nosso 12º aniversário. Vejo muitas caras
conhecidas, outras nem tanto… e estou bastante comovido por partilharem este
momento convosco.
Para este dia tão especial,
temos um menu degustativo tardio, elaborado pelo nosso chef, para quem peço uma salva de palmas, grande aplauso,
Yakusaaaaaaaa! Acompanhado pela sua equipa: Mary, Gabi e Juanita. (Alguém bate palmas) Pode ser (referindo-se às palmas dirigidas às ajudantes).
Este nosso 12º aniversário
reserva-nos uma noite de variedades para disfrutar durante a degustação
apoteótica da nossa ceia. E para iniciar esta magnífica noite, senhoras e
senhores, uma das sete maravilhas da gastronomia nacional, convosco: o caldo
verde!
O serviço inicia-se ao som de Mulath Astake -
Yermo Sew.
[Shot de caldo verde servido às mesas pela
equipa de cozinha]
Enquanto o apreciam, vou circular pelas mesas para vos
dar conselhos e sugestões de moda e arte, como é meu hábito.
GOMES
DE SÁ (dirigindo-se a um cliente):
Que cor incrível! Recorda-me o azul do mar de um quadro de … que conheci em
novo.
Gomes de Sá contacta com pessoas de mais duas ou três
mesas. Ao falar, apalpa os clientes nos ombros e braços. Toca-lhes também com
os dedos na face e nariz. Aproxima-se da mesa da vítima.
GOMES
DE SÁ (dirigindo-se à vítima): Olá,
boa noite! É a sua primeira vez, não é?
VÍTIMA:
É, sim.
GOMES
DE SÁ: Prazer! (pega-lhe na mão).
Gomes de Sá ao seu dispor! Está a gostar? (vítima
anui) Espero que sim. Não pude deixar de reparar no seu vestido: é
incrível! Importa-se de dar uma voltinha?
VÍTIMA:
Quer que me levante?
GOMES
DE SÁ: Sim. Faz-me lembrar um quadro de Matisse: as noivas. Esta pérola é
divinal!
A Vítima levanta-se, dá uma volta sobre si, segurando
na mão de Gomes de Sá e volta a sentar-se. Gomes de Sá continua a circular pela
sala e chega à mesa do crítico.
GOMES DE SÁ: Boa noite, Gomes de Sá
ao seu dispor. Marchant do
restaurante Passe-Vite: a arte de satisfazer o seu apetite. Está tudo do seu
agrado?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (mostrando-lhe o telemóvel): Não.
GOMES DE SÁ: Não?...
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Já estou à
espera há quinze minutos e ainda não fui atendido.
GOMES DE SÁ: A espera é o nosso amuse bouche para lhe divertir a boca.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Perde a piada
quando se tem pressa.
GOMES DE SÁ: Mais um?! Se veio sem
tempo, se calhar, fica apertado.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Apertado!
GOMES DE SÁ (desinteressa-se e parte para outras mesas): Apertado para degustar
o nosso menu.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Já tivemos
esta conversa antes, sabe?
GOMES DE SÁ: Já nos conhecemos?
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Sim. Falámos
ao telemóvel.
GOMES DE SÁ: Pois. Sabe, eu falo com
tanta gente ao telemóvel…
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Acabámos de
falar ao telefone.
GOMES DE SÁ (volta à mesa do crítico): Ah! O senhor comprometido.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: O senhor
Miguel Vaz Frio.
GOMES DE SÁ: Senhor Miguel Vaz
Frio... o romancista, não! O escritor... o jornalista, o compositor. Adoro a
sua opereta em lá menor...
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Crítico.
GOMES DE SÁ: Crítico de arte Miguel
Vaz Frio! Adoro a sua abordagem ao contemporâneo!
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Crítico
gastronómico.
GOMES DE SÁ: Crítico gastronómico...
Então Kandinski não lhe diz nada... Muito bem... Crítico gastronómico com
pressa... Forrar... Vermeer? Também
nada...
Gomes
de Sá pega no letreiro que diz ‘reservado’ e olha em volta. Volta a fitar a
vítima e dirige-se novamente à sua mesa.
GOMES DE SÁ: Olá novamente!
VÍTIMA: Olá.
GOMES DE SÁ: Continua tudo bem?
VÍTIMA: Sim, mas… (olhando para o letreiro) esta mesa está
cheia.
GOMES DE SÁ: Pois… (continua a baixar o letreiro para o poisar
naquela mesa).
VÍTIMA: Mas eu já estou aqui!
GOMES DE SÁ: Sim e agora está
reservada.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
corredor vazio e corredor com Gomes de Sá]
A
imagem do que poderia ser um vídeo de vigilância de um corredor de cave começa
a ser emitida e Gomes de Sá fica apreensivo e sai. Vemos ainda Gomes de Sá no
víde,o a percorrer o corredor a espreitar ao fundo com expressão preocupada.
Fica alguns momentos a escutar e volta a percorrer o corredor.
[2º
número de variedades: Receitas e Segredos Passe-Vite]
Escuta-se a introdução de uma música (Mulath
Astake - Chifara). Quando o ritmo aumenta, entra Marie e coloca-se por detrás
da bancada móvel de cozinha.
MARIE:
Boa noite, hoje, nesta altura tão especial, cederam-me a oportunidade de vos
mostrar algumas das receitas e segredos Passe-Vite! Por isso, vou começar por
uma receita muito simples… Sopa da Pedra! Necessito de uma pedra, mas não de
uma pedra qualquer: tem de ser uma pedra redondinha, branquinha e limadinha e o
que eu tenho aqui é um calhau! Vou pedir, portanto, ajuda a um voluntário. O
senhor aí ao fundo de casaco castanho (dirige-se
a João Miguel Vaz Frio que se tinha levantado e caminhava no sentido da porta
de saída), queira ajudar-me! (Ele
acede ao pedido). Obrigada.
O senhor pegue na pedra, coloque
a pedra no recipiente (Marie retira o
recipiente de baixo da bancada) e vá banhando assim (Marie demonstra como deve ser banhada a pedra), até que a erosão se
confirme o que é capaz de demorar cerca de 42 meses. Enquanto o nosso amigo nos
ajuda com a Sopa da Pedra, vou continuando a revelar-vos mais segredos.
Passemos, então, para a receita
seguinte que é exactamente uma bucha. (Marie
retira dois pães debaixo da bancada e duas fatias de queijo enquanto explica)
Duas fatias de queijo… duas fatias de pão… mas não de um pão qualquer, tem de
ser pão que o Diabo amassou. Modo de preparação: juntamos pão, pão (coloca os pães um por cima do outro) e
as fatias de queijo (coloca as fatias de
queijo por cima dos pães) e temos: pão, pão, queijo, queijo – a bucha do
desejo.
E agora tenho o prazer de vos
apresentar uma receita que tem passado de geração em geração na minha família.
(Marie retira debaixo da bancada um copo
com arroz, um saco de açúcar, um recipiente para fazer a mistura e vai
explicando) Precisamos de arroz, açúcar e um recipiente. Juntamos arroz, açúcar
e mexemos bem. Temos arroz doce!
Se nada disto vos aprouver,
então, eu tenho a solução – sim porque eu tenho a solução para tudo! – Fome! O
melhor tempero… (polvilha todos os
restantes pratos com o tempero) é a fome!
Boa noite e parabéns Passe-Vite!
Marie repara que João Miguel Vaz Frio continuou não só a
banhar a pedra, como está num transe de dança com a mesma. Deixa-o continuar
naquele estado.
Gomes de Sá volta à sala para
apresentar o 1º prato e, enquanto o faz, vai observando admirado João Miguel
Vaz Frio, que não pára de dançar com a pedra e não o escuta no seu discurso.
GOMES
DE SÁ: Espero que o caldo verde tenha sido do vosso agrado. Venho agora
apresentar-vos o nosso 1º prato, uma especialidade do nosso chef Yakusa: Mil folhas de aves. É um
folhado de aves, no fundo. De alheira. Dobra-se a massa, estende-se a massa,
dobra-se a massa, estende-se a massa, coloca-se manteiga lá dentro… e tem
alheira lá dentro!
[1º
prato – Livro de Yakusa (folhado de alheira) servido pelas ajudantes de
cozinha. Yakusa espera para servir João Miguel Vaz Frio]
Gomes de Sá volta a atenção para o crítico e
começa a dançar com ele, mas sem o tocar, imitando-o. Mantém a dança por alguns
minutos, até que Gomes de Sá lhe tapa os ouvidos e deixamos de escutar a
música. João Miguel Vaz Frio volta a si.
GOMES
DE SÁ: Aqui tem o mil-folhas que anunciei ainda agora. Não sei se estava
connosco.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Qual é a estória deste prato?
GOMES
DE SÁ: Abre-se, dobra-se, estende-se, dobra-se… É um folhado… de aves. (O crítico pega na pedra e permanece sempre
com ela). Pegue nele e coma--o: há-de azedar-lhe no estômago, mas na boca
vai saber-lhe a mel (o crítico prova o
folhado).
João Miguel Vaz frio cospe para o guardanapo
o que acabou de provar.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (falando e abrindo o seu
caderno e começando a anotar): É a primeira vez que faz este prato?
(dirigindo-se para Yakusa).
GOMES
DE SÁ: Não, não. Este prato é confeccionado pelo Yakusa há mais de dez anos.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): As pessoas gostam deste prato?
GOMES
DE SÁ: É um prato muito apreciado.
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): Os seus pais já provaram?
GOMES
DE SÁ: Sim, claro!
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (dirigindo-se para Yakusa): Tem o amor dos seus pais?
GOMES
DE SÁ: O Yakusa é um filho muito amado!
Yakusa, que está por detrás do ombro esquerdo de João
Miguel Vaz Frio, faz uma rápida careta com a língua de fora e sai para a copa.
GOMES
DE SÁ: É preciso que continue a profetizar contra muitos povos, nações, línguas
e reinos… (vai-se afastando do crítico e dirige-se ao microfone).
E, agora, para continuarem a
disfrutar deste prato, mais um número: O Frango Sinatra! Palmas meus senhores!
[3º
número de variedades: Frango Sinatra (Frank Sinatra – Come Fly With Me): um
frango usado como marioneta por cima da bancada de cozinha móvel faz um dueto enamorado
de sapateado com Juanita]
[Vídeo
Templo na Arca Frigorífica: vê-se Gomes de Sá a abrir uma arca frigorífica e a
rezar para um altar que tem montado no seu interior]
[4º
número de variedades: Estória dos Alhos e Bugalhos]
Entra Gaby, pega no microfone e dirige-se aos
clientes.
GABY:
Boa noite, senhoras e senhores. Eu vim aqui contar uma estória verídica, que
mudou para sempre a História da Culinária Contemporânea. Alguém aqui sabe por que
é que não se misturam alhos com bugalhos? (Não
deixa ninguém responder) Não. Eu vou contar.
Era um casal de um alho e um
bugalho, um casal normal que vocês vêem todos os dias e o bugalho foi para a
Guerra dos Bugalhões combater bugalhinhos. O alho ficou em casa, durante cerca
de três anos, e, nesse tempo, conheceu uma cebola – uma cebola do campo com uma
casquinha fácil de tirar. Entretanto, vem o bugalho da guerra e, quando chega a
casa, dá de caras com o alho e a cebola numa banheira de caldo Knorr a beberem
um copo de azeite. O bugalho, ao ver aquilo com os seus olhos esbugalhados,
diz: ‘Qu’est-ce que c’est ça? Você já
não me quer, alho? Que alhada vem a ser esta?’ E o alho também surpreendido de
ver ali o bugalho diz: ‘Querido bugalho, ne
c’est pas o que parrece! Eu sempre que estou com a cebola choro só de
pensar em ti! Tu sabes que ainda sou o teu dente- -de-alho e você a minha
angiosperma. A cebola, ao ouvir estas palavras não tão carinhosas para com ela,
saca de uma pistola e… pum! Mata o alho. E pum! Mata também o bugalho. E faz um
estrugido, um estrugido que depois colocou no frigorífico, porque todos sabemos
que a vingança é um prato que se serve frio, e deu-o às suas amigas cebolinhas.
Era um estrugido que sabia muito mal, porque tinha o sabor da traição.
E é por isso que não se pode
misturar alhos com bugalhos. Boa noite.
Gaby começa a dirigir-se para a copa e é
interrompida por João Miguel Vaz Frio.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Então como
explica que cebola e alho combinem tão bem, se consubstanciam uma infidelidade?
GABY: O estrugido proibido é o mais
apetecido.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: O estrugido
proibido não devia conter maçã?
GABY: Une affair não se quer doce.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: É esse o sabor
do casamento?
GABY: Doce aos três, adstringente
aos sete e carbonate aos doze.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: E o da saída?
(levanta-se e dirigindo-se para a porta
de saída)
GABY: Com concasseé.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: En gelée.
GABY: Depuis de gratinée.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Gratin satin.
GABY: Vol-au-vent.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: É esse o sabor
da morte?
…
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Figo.
GABY: Passa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Fermento.
GABY: Farinha.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Panado.
GABY: Tártaro.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Velauté.
GABY: Brie.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Ginja.
GABY: Cereja.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Mirtilo.
GABY: Marmelo.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Melão.
GABY: Abacaxi.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Goiaba.
GABY: Maracujá.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Abacate.
GABY: Anona.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Açaí.
GABY: Ameixa.
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO: Tomarei nota.
Escuta-se
música (marcha fúnebre de Beethoven).
[2º
prato (crepes) – preparação por Yakusa ao vivo com recitações em japonês,
servido pelas ajudantes de comida à sala]
A meio do processo, entra Gomes de Sá e
dirige-se ao microfone com a Bíblia na mão.
GOMES
DE SÁ, declamado quase gritado: Lança
a tua foice, pois chegou a hora de ceifar porque a seara da terra já está
madura. Pega na tua foice afiada e vindima os cachos da vinha da terra, porque
as uvas já estão maduras. O que vão desfrutar agora é exactamente um crepe...
Uma nuvem… Um enrolado…
[BLACKOUT]
Escuta-se música (Angelo Badalamenti - Andrey’s Dance). A equipa de
cozinha movimenta-se em câmara lenta e dirige-se para a Vítima numa sequência
que tem por objectivo deixar derramar água sobre ela como se fosse por
acidente, a qual inclui Juanita a simular o parto.
MARIE
(em câmara lenta para a vítima):
Prefere água fresca ou natural?
VÍTIMA:
Pode ser natural.
É derramada água sobre a vítima.
VÍTIMA:
Ai! Está fria! Molharam-me toda!
EQUIPA,
quase em uníssono: Ah! Oh! Desculpe.
Venha connosco, tem que se limpar.
GOMES
DE SÁ (aproxima-se): Peço imensa
desculpa pelo que aconteceu. Vá limpar-se lá dentro. (Afasta-se e vai na direcção do crítico que apresenta uma expressão
indignada). Ó, despejaram água sobre a senhora. Às vezes acontece…
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO: Pareceu de propósito. Despejaram água de propósito na senhora.
Vou-me embora, já chega!
GOMES
DE SÁ: Não foi nada! Tenha calma. Deixe-se ficar!
Conversam. Vão-se dirigindo para a porta.
Permanecem lá uns minutos. Voltam. Gomes de Sá vem com uma expressão de
deslumbramento, quase infantil. Conversam, dirigindo-se devagar para a mesa do
crítico.
GOMES
DE SÁ (vem com a Bíblia na mão): … no
Egipto eles encontraram tudo o que necessitavam. Sentiram-se plenos! (…) No
Passe-Vite não se inventa nada, já tudo foi inventado. Fique mais um pouco na
nossa companhia. Tenho a certeza de que será bastante agradável!
Deixa João Miguel Vaz Frio e aproxima-se do
microfone:
GOMES
DE SÁ: Enquanto continuam a fruir do nosso enrolado, gostava de partilhar
convosco mais uma leitura bíblica sobre a Brevidade da Vida (lendo da Bíblia). Eu disse a mim
próprio: ‘vigiarei sobre a minha conduta, para não pecar com a língua;
refrearei a minha boca, enquanto o ímpio estiver diante de mim’. Fiquei calado e
em silêncio, mas sem proveito, porque se agravou a minha dor. O coração
ardia-me no peito; de tanto pensar nisto, esse fogo avivava-se e deixei a minha
língua dizer: ‘Senhor, dá-me a conhecer o meu fim e o número dos meus dias,
para que veja como sou efémero. De poucos palmos fizeste os meus dias; diante
de ti a minha existência é como nada; o homem não é mais do que um sopro! Ele
passa como simples sombra! É em vão que se agita: amontoa riquezas e não sabe
para quem ficam. Agora, Senhor, que posso eu esperar? A minha esperança está em
ti. Livra-me de todas as minhas faltas; não deixeis que o insensato se ria de
mim. Fiquei calado, sem abrir a boca, porque és Tu quem intervém. Afasta de mim
os teus castigos; desfaleço ao peso da tua mão. Tu corriges o homem, castigando
a sua culpa, e, como a traça, destróis o que ele mais estima. Na verdade, o
homem é apenas um sopro. Senhor, ouve a minha oração, escuta o meu lamento; não
fiques insensível às minhas lágrimas. Diante de ti sou como um estrangeiro, um
hóspede, como os meus antepassados. Desvia de mim os olhos, para que eu possa
respirar; antes que tenha de partir, e acabe a minha existência’.
E agora peço um grande aplauso para o momento alto desta
noite e de todas as festas de aniversário: Nita!
[5º
e último número de variedades a Canção de Aniversário (Happy Birthday – jazz
version): Gomes de Sá força Juanita a cantá-la]
Gomes de Sá retira o casaco de Juanita e
expõe a sua barriga de grávida. Juanita canta com voz embargada e chora no
final. Juanita apanha o casaco do chão e sai o mais rápido que consegue para a
copa.
GOMES
DE SÁ (no final): Obrigado! Obrigado!
Foi um prazer!
JOÃO
MIGUEL VAZ FRIO (com expressão infantil e
batendo palmas com as mãos juntas): Bolo! Bolo! Bolo! (muda de expressão, para uma mais melancólica). Sr. Gomes de Sá, já
posso ir para casa agora?
[Equipa
de cozinha transfigura-se nos Quatro cavaleiros do Apocalipse]
[1º
Cavaleiro: Gaby]
Gabi entra com um carro onde tem uma tábua de
cozinha com vegetais. Segredando frases que vão aumentando de tom. Desloca-se
assim até ao fundo da sala, onde se encontra um candeeiro.
GABY (falando já
alto): Foram resgatados como primícias da humanidade por Deus e pelo
Cordeiro. (Pega no pepino). Pepininho
com um toque tão suave e masculino (pega
na faca e arrasta-a ao longo do pepino). Pepininho é a tua amiga (corta sonoramente). Descansa pepininho.
Cenourinha (música: Requiem
- Mozart) tão magoada e cicatrizada como quem precisa de carinho, carinho
que só eu sei dar. Sim cenourinha tu sabes que podes contar comigo (corta sonoramente).
Tomatinho tão vermelhinho, tão macio como a minha pele. (Fura-o com a faca). Escorre tomatinho,
deixa-te escorrer, podes escorrer tomatinho, podes escorrer (corta sonoramente). Na sua boca não se
achou mentira. São irrepreensíveis.
Bananinha tão amarela e ingénua como quem pede para as
suas vestes serem tiradas (retira a
casta, e lambe o interior carnudo. Come-o). Estes são os que não se
perverteram com mulheres porque são virgens. Estes são os que seguem o Cordeiro
para toda a parte.
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia ainda sem Gomes de Sá e Vítima]
Amiguinhos, ó não! (Junta
os pedaços cortados dos vegetais, coloca-se de joelhos). Amiguinhos não! Ó
desculpem! Eu não queria fazer isto! Eu não queria fazer isto! Eu não queria
fazer isto! (Grita. Chora). Desculpem
amiguinhos. Desculpem. Vamos ficar juntos para sempre. Amiguinhos! Vamos ficar juntos
para sempre! Amiguinhos! (Flagela-se com
ramos de nabiças).
Gaby mantém-se nessa acção até ao final do
espectáculo. Entretanto, despe a jaleca e vêem-se marcas de feridas nas suas
costas.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
Gomes de Sá arrasta a Vítima]
[2º Cavaleiro: Marie. Vestido branco, venda
nos olhos, mão esquerda constituída de espetos, maçãs são trazidas dentro de um
lenço branco e atiradas ao chão e devoradas, uma e outra vez. Movimenta-se pela
sala, experimentando a mão metálica, sentando-se no banco que arrasta para o
centro da sala, onde cria estátuas vivas. Sai apanhando as maçãs com a outra
mão. Vai-se colocar noutro canto da sala, onde está outro candeeiro e mantém-se
com a mesma acção até ao final]
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia: Gomes de Sá coloca a Vítima]
[3º
Cavaleiro: Juanita. Entra de rompante com um vestido branco mais comprido mas
do mesmo tecido do anterior, todo ensanguentado e uma faca na sua mão. Atira
arroz ao chão. Movimenta-se mais no espaço. Pára. Atira arroz ao chão. Grita.
Faz penitência andando com os joelhos por cima do arroz. Arrasta-se até a um
outro candeeiro num dos cantos da sala. Mantém-se até ao final em agonia,
vergonha e dor]
[Vídeo
da Reconstituição da Última Ceia: Gomes de Sá toma o lugar de Cristo]
[4º
Cavaleiro: Yakusa. Veste somente uma cueca de pano branco. Traz dois ramos de
alho-francês e uma melancia consigo. Vai até à bancada de cozinha móvel. Começa
a bater com os ramos de alho-francês na melancia, destruindo-os.
Destapa
a cabeça e mostra a careca. Destrói a melancia. Retira lá de dentro um pó
branco, depois uma língua vermelha. Permanece com ela na boca. Vai-se colocar
no centro da sala num banco que foi deixado por Marie onde cria a estátua viva
do 4º Cavaleiro com a sua flecha]
JOÃO MIGUEL VAZ FRIO (constatando, ainda sentado): Caiu, caiu
a grande Babilónia. (Levanta-se com a
pedra na mão mas mantém-se na mesa). Antro de demónios, guarida de todos os
espíritos imundos; porque, do vinho da sua luxúria, se embriagaram todas as
nações; prostituíram-se com ela os reis da terra, e, com o seu luxo
despudorado, enriqueceram os comerciantes do mundo.
Meu povo, (mais exaltado, começa a movimentar-se nas
sala, sempre com a pedra na mão) saí desta cidade para não serdes cúmplice
do seu crime nem vítima dos seus castigos. Fora os cães, os feiticeiros, os
luxuriosos, os assassinos, os idólatras e todos os que amam e praticam a
fraude. Todos terão como herança o lago ardente do fogo e enxofre (mais baixo). Aí serão atormentados de
dia e de noite, pelos séculos e séculos.
Vem
cá (para uma pessoa numa mesa). Vou
mostrar-te a sentença contra a grande prostituta. Aquela que dizia: ‘Estou
sentada no trono como rainha, não sou viúva e jamais conhecerei o luto’. No
deserto, deserto vi, vi uma mulher, mulher coberta, coberta de nomes, nomes
blasfemos, montada numa besta. A besta odiará a prostituta, vai devorar a sua
carne e destruí-la pelo fogo. Chorarão por ela os que tomaram parte na sua
prostituição e na sua luxúria, quando virem o fumo do braseiro da cidade: Ai
caiu, caiu a grande Babilónia!
A melodia das
cítaras e dos músicos nunca mais se ouvirá dentro de ti. Nunca mais se
encontrará em ti nenhum artista de qualquer arte que seja. A luz da lâmpada
nunca mais brilhará dentro de ti.
[Vídeos de Câmara de Vigilância:
Gomes de Sá transfigurado em Cristo atravessa o corredor]
O
4º Cavaleiro sai do banco e coloca-se no último candeeiro livre da sala.
[BLACKOUT]
Em
voz-off escuta-se: Eu sou o Alfa e o Ómega, o Primeiro
e Último, o Princípio e o Fim. Ao que tiver sede, Eu lhe darei a beber
gratuitamente, da nascente da água da vida. Enxugarei todas as lágrimas dos
seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as
primeiras coisas passaram. Felizes os que lavam as suas vestes, para terem
direito à Árvore da Vida e poderem entrar nas portas da Nova Jerusalém.
[Sobremesa: iogurte grego com frutos
silvestres e biscoitos de milho triturado]
Entra
Gomes de Sá transfigurado em Cristo e serve a sobremesa a João Miguel Vaz Frio.
A equipa de cozinha transfigurada nos quatro cavaleiros do apocalipse serve a
sobremesa aos restantes. A música (Requiem
- Mozart) termina. FIM
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