A
Associação Portuguesa de Críticos de Teatro atribuiu o Prémio da Crítica,
relativo ao ano de 2011, às Comédias do Minho. O júri foi constituído por
Alexandra Moreira da Silva, Constança Carvalho Homem, João Carneiro, Maria
Helena Serôdio e Rui Monteiro.
Comédias do Minho
Duas ou três ideias sobre um teatro necessário
Alexandra Moreira da Silva
- “A movida artística”
Num pequeno texto de introdução ao programa de 2011
das Comédias do Minho, o leitor /espetador contemporâneo, incauto porque
conformado com a já habitual necessidade de circunscrever o seu interesse ao
que se vai fazendo aqui e agora, adiando a sua natural curiosidade
relativamente a configurações programáticas mais amplas – entenda-se para uma
temporada – sendo obrigado a resignar-se, não raras vezes, perante a incerteza
ou, pior ainda, o abandono de projetos e ambições nas mais variadas áreas e
domínios artísticos, espanta-se com a ousadia, o otimismo, a confiança e a
persistência que podemos ler nas palavras inaugurais do referido texto: “As
Comédias do Minho, durante os próximos dois anos vão mergulhar ainda mais no
seu Território à procura de novos desafios – temas e paisagens do Vale do Minho
vão ser ponto forte de arriscados e profundos trabalhos de criação”. O mais
extraordinário é que prometeram e cumpriram. Pelo menos no primeiro ano, em
2011, e, de acordo com o novo caderno de programação, preparam-se já para
assegurar o segundo ano com o mesmo dinamismo e a mesma criatividade.
A “movida artística”[i] que as Comédias instalaram no Alto Minho
passa muito pela Companhia de Teatro da qual fazem parte, para além do seu
diretor artístico João Pedro Vaz, os actores e criadores Gonçalo Fonseca, Luís
Filipe Silva, Mónica Tavares, Rui Mendonça e Tânia Almeida que decidiram mudar-se
com diferentes armas artísticas e reconhecida bagagem teatral para o Alto
Minho, dispostos a arregaçarem as mangas e a dedicarem-se, talvez mais do que
nunca, a essa “arte poderosamente arcaica”, como lhe chama Jean-Christophe
Bailly[ii], que é o teatro.
Mas não só dos residentes vive a dinâmica deste
projeto. A “movida” implica, desde logo, uma rede de vasos comunicantes que tem
levado até aos cinco concelhos do Vale do Minho (Melgaço, Monção, Paredes de
Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira) criadores tão diversos quanto Pedro
Penim, Madalena Vitorino, Sílvia Real, Igor Gandra, Marcos Barbosa ou mais
recentemente Nuno Cardoso e Joana Providência. Escusado será dizer que não se
trata de fazer um teatro regionalista, nem sequer um teatro etnográfico. Os
projetos partem de materiais e ferramentas que funcionam “em Melgaço ou em
Reiquejavique”[iii], como afirma Pedro Penim: de
Steven Berkoff, aos vídeos do YouTube, passando pela Bíblia ou pelo Fidalgo
Aprendiz, tudo pode ser trabalhado, repensado e visto no Alto Minho, com o
mesmo rigor e a mesma seriedade com que estes trabalhos foram apresentados no
Balleteatro, no Porto, ou no TNDM, em Lisboa.
Em 2011, permito-me destacar o projeto Casa Grande,
co-produzido pela Fundação Lapa do Lobo, que resultou na criação de cinco
espetáculos a partir de cinco espaços físicos diferentes. Casas de família,
solares desabitados, vazios ou devolutos, foram ocupados, transformados,
revisitados por Tânia Almeida, que assinou a encenação deste projeto, por
atores (profissionais e amadores), por Rui Mendonça, Lucília Raimundo, Ana
Limpinho, Maria João Castelo e Vasco Ferreira que integraram a equipa artística
de Casa Grande, e sobretudo por um público atento, ávido e de uma rara
heterogeniedade, todos convictos e conscientes de que os espaços também têm
memória. E com a memória vem o tempo, e com o tempo vêm as histórias (da
aristocracia monárquica na passagem para a República, por exemplo, ou dos
militantes anti-fascistas na clandestinidade no período pré-revolucionário). Em
1983, numa conferência proferida em Roma, Antoine Vitez fazia a seguinte
afirmação sobre a prática teatral: “É um trabalho de ordem monástica, mesmo se
a nossa vida não é monástica. Somos pessoas que nos fechamos em sítios fechados
(...) e nesses lugares conservamos frases que já foram pronunciadas e
concebidas, e dedicamo-nos a reconstituir movimentos através da imaginação e a
partir do rasto de acções que foram escritas. Fazemos isto para trabalhar, para
criticar a memória da humanidade. É este o nosso ofício, trabalhar sobre esta
memória.”[iv] Entre o íntimo e o político, Casa
Grande parece subscrever as palavras de Antoine Vitez, apresentando-se,
antes de mais, como um projeto que interroga a identidade, que percorre
insistentemente um espaço, um tempo, uma memória, e que deste modo questiona e
reescreve a ficção.
- “Aproximarte” é aproximarmo-nos: itinerâncias polifónicas
Entre a criação contemporânea e o trabalho no terreno,
as Comédias não têm tempo a perder. O projeto “Aproximarte” envolve várias
escolas dos cinco concelhos do Vale do Minho do ensino pré-escolar, básico e
secundário, bem como professores, famílias e utentes APPACDM. Contrariamente ao
que se possa imaginar, esta vertente pedagógica das Comédias não constitui uma
atividade marginal, bem pelo contrário, trata-se de um labor nuclear que
escolhe e utiliza uma grande diversidade de ferramentas e de estratégias:
oficinas de dança, de cinema de animação, de movimento, de formação artística,
cursos de teatro, encontros com criadores... são apenas algumas das propostas
que visam a promoção e o desenvolvimento de um conceito de “público” que
conscientemente contraria a muito contemporânea noção de “audiência”. Isabel
Alves Costa, mentora incontornável deste projeto, falava da necessidade de se
estabelecer “uma relação íntima com a população”; “Aqui vemos ao vivo o que é a
formação dos públicos”, afirma. “A atitude das pessoas é: mas o que é que eles
irão fazer a seguir? Não estão de todo à espera do mesmo”[v], conclui. Mas estão à espera de alguma coisa.
Esperam verdadeiramente, e isso será talvez o que de mais político existe no
teatro. Como afirma Denis Guénoun “o caráter político do teatro não está no
palco – ou (...) em todo o caso, não é no palco que ele se encontra em primeiro
lugar – mas sim na sala”[vi]. Ou seja, nessa capacidade de conseguir
reunir, a uma certa hora, num determinado lugar, uma comunidade a que talvez
possamos chamar “teatral”. Em 2011, 13 500 espetadores assistiram aos
espetáculos das Comédias do Minho – número invejável nos tempos que correm.
Contudo, mais importante do que os números – e este é
certamente um dos grandes méritos das Comédias – será esta vontade, esta
capacidade de criar aquilo a que Jean-Christophe Bailly chama uma comunidade
de espera, conceito a distinguir de uma pura aproximação quantitativa
porque, como refere o autor, “não é adicionando o número de leitores de livros,
o número de visitantes de exposições e o número de espetadores de teatro que
assistiremos à formação de uma qualquer consistência.”[vii] A comunidade de espera pressupõe uma
vontade de abertura. Abertura ao tempo, desde logo, a um tempo lento que mais
não é do que um espaço de sentidos e de desejo de partilha desses sentidos. O
teatro não é um filme que se leva para casa, não é um quadro que se vê num
museu, não é um livro que se lê na solidão da poltrona. O teatro é um desejo
comum.
Nestas itinerâncias polifónicas, há ainda lugar para
os espectáculos comunitários, onde participam grupos de teatro amador e
associações locais, como é o caso da Queima do Judas, dos cinco acontecimentos
artísticos que assinalaram a comemoração dos 750 do concelho de Monção, ou do
muito improvável – mas que contrariando todas as improbabilidades conta já com
uma segunda edição – FITAVALE (Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do
Minho).
São assim as Comédias do Minho, são tudo isto e muito
mais, conscientes de que na cidade ou na “discreta vila, perdida no meio da
serra, já só pedras e quase a tocar no céu”[viii], o teatro é não só possível como também
necessário.
______________________________________________
[i]A expressão “movida artística” surge no final
do texto de introdução ao programa de 2011 das Comédias do Minho: “Um
programa intenso, utópico, enérgico! Contra a austeridade, uma verdadeira
movida artística, um centro cultural itinerante, um centro cultural na
paisagem!”
[ii] Jean-Christophe Bailly, “Un
jour mon prince viendra”, in Stiegler, Bailly, Guénoun, Le Théâtre, le
peuple, la passion, Besonçon, Les Solitaires Intempestifs, 2006, p. 67
[iii] Pedro Penim citado por Inês Nadais in
“Reiquejavique no Alto Minho”, Público, 06.01.2009.
[iv] Antoine Vitez, “La
Réssurection”, Antoine Vitez, Actes Sud-Papiers/ Conservatoire d’Art
Dramatique, Mettre en Scène, 2006, p. 108
[v] Isabel Alves Costa citada por Inês Nadais in
“Estes actores foram trabalhar para o campo”, Público, 03.04.2009.
[vi] Denis Guénoun, “Que faire du
théâtre, Que faire au théâtre”, Livraison et délivrance, Paris, Belin,
2009, p. 46.
[vii] Jean-Christophe Bailly, “Un
jour mon prince viendra”, in Stiegler, Bailly, Guénoun, Le Théâtre, le
peuple, la passion, Besonçon, Les Solitaires Intempestifs, 2006, p. 77.
[viii] Tiago Bartolomeu Costa, “De pés na terra e
teatro como céu”, Público, 24.01.2012.
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