FITAVALE - Inventar comunidades
Jorge Palinhos *
O
teatro ama a pedra. Sempre a amou, dos anfiteatros gregos, aos mercados
medievais, às fachadas dos teatros do romantismo. À falta de pedra, era de
betão o anfiteatro cinzento e escuro coberto com telhado de zinco, no meio do
casario de Verdoejo, nos arredores de Valença, o local onde decorria a
cerimónia de encerramento do II Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do
Minho - FITAVALE. Dentro do anfiteatro a transbordar de pessoas e entusiasmo,
um autarca subiu ao palco para assinalar o encerramento do FITAVALE. Mal o
acrónimo do Festival se lhe soltou dos lábios, foi acolhido por uma gargalhada
coletiva que o deixou perplexo e a perguntar para os lados o que se passava.
O
riso é um segredo, e quando esse segredo, esse filamento de imaginação, é
partilhado por centenas de pessoas, sabemos que há algo que une essas pessoas e
faz delas comunidade. E aquilo que se viu nos três dias do festival foi a
invenção de uma comunidade.
O
Festival em si é uma loucura e os seus organizadores, as Comédias do Minho
lideradas por João Pedro Vaz, são um bando de loucos. Não loucos perigosos, mas
loucos preciosos. A ideia do festival: apresentar cinco peças de teatro
amadoras, dirigidas pelos profissionais das Comédias do Minho, montadas por
associações locais, apresentadas em concelhos do vale do Alto Minho, que não
sejam a sede da dita associação, ocupando diferentes espaços num raio de
dezenas de quilómetros e movendo centenas de pessoas e equipamento ao longo dos
cinco diferentes concelhos - Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila
Nova de Cerveira -, durante um fim-de-semana inteiro. Loucos, como eu dizia.
Num
universo onde já não há messias nem santos, só os loucos é que ainda conseguem
fazer milagres. E o FITAVALE é um milagre. Um milagre de esforço, entusiasmo,
alegria, união, partilha, generosidade, improvisação e até inconsciência, que
durante três dias transforma a região, criando dentro dela um mundo imaginário:
o mundo do FITAVALE, onde centenas de pessoas, de diferentes concelhos, veem
teatro, a mais louca das artes.
É
que o teatro, ao contrário da prestigiada literatura, do glamoroso cinema, das
veneráveis artes plásticas ou da irreverente multimédia, nunca exigiu o domínio
de tecnologias avançadas, nunca exigiu materiais dispendiosos, nunca implicou
técnicas de reprodução mecânica ou digital, nunca se refugiou num tempo e num
espaço longínquos. É apenas algo que se faz aqui e agora, com corpos, gestos,
vozes, suor, trabalho, perdigotos e uma fome torrencial de partilha com aqueles
que nos rodeiam. É uma arte que assenta nessa loucura que é a de ter alguém à
nossa frente a falar e a agir como se o mundo fosse diferente. Como se o mundo
pudesse ser diferente. Não admira por isso que sempre tenha sido a arte que
mais atemorizou os estados e as instituições. Haverá coisa mais louca e
subversiva que inventar um presente diferente?
Talvez
por isso, o teatro sempre foi a arte mais popular e a arte mais comunitária. A
arte que se praticou em todas as aldeias e bairros de Portugal até há poucas
décadas, que se podia fazer com uma máscara, um papel, um farrapo de roupa e
muita vontade. A arte que, no dizer de George Steiner, inventa comunidades, que
estabelece vínculos entre aqueles que veem e aqueles que fazem, que cria
gestos, palavras, histórias e imaginários comuns. Veja-se como a estrutura do
teatro é justamente a do viver em comunidade: diferentes pessoas que têm de
conviver no mesmo espaço, negociar o mesmo espaço, partilhar a fala mítica que
define o ser humano, e ser uns com os outros e uns contra os outros, tal como
Georg Simmel definia a ideia de comunidade.
E,
durante um fim-de-semana, esse lugar mítico que é o vale tornou-se um lugar
ainda mais mítico. Cinco peças notáveis, que revelam como o teatro pode ser o
óculo para uma comunidade ver mais longe, ou o espelho para se ver a si
própria.
No
primeiro caso temos “Dança de Roda”, de Arthur Schnitzler, montado pelo Teatro
Amador Courense, sob direção de Mónica Tavares, que nos mostra como uma
história escrita há mais de cem anos pode ainda ter ressonância hoje.
Temos
também «Nim», pelos Outra Cena, de Vila Nova de Cerveira, dirigido por Tânia
Almeida, em que o universo esotérico de Alejandro Jodorowski funde com a vida
quotidiana dos próprios atores, mostrando como é pouca a distância entre um e
outros.
A
olhar também longe, temos também «Voz Off», pelo Os Simples, Grupo Amador de
Teatro de Melgaço, dirigido por Gonçalo Fonseca, que monta uma maquinaria
cénica de uma complexidade inalcançávek por muitas companhias profissionais,
misturando elementos do imaginário francês de Jacques Tati com elementos
minhotos, para criar algo ao mesmo tempo exótico e reconhecível.
Já
do outro lado, do lado de quem olha para si próprio, para quem é, temos
«Garganta», pelos Verde Vejo, da Associação Cultural de Verdoejo, Valença,
coordenados por Rui Mendonça, que escolheram encenar as suas próprias memórias
comunitárias, da forma como elas são mais verdadeiras: como fantasmas
impalpáveis e difusos, mas também fortes e omnipresentes nos mais simples dos
gestos.
Por
fim, e acabo com a peça que inaugurou o Festival, «O Passeio dos Mortos», pela
Associação Filarmónica Milagrense, de Monção, dirigida por Luís Filipe Silva.
Uma meditação sobre os efeitos sociais da Guerra Civil Espanhola na Galiza,
escrita por um membro da companhia, Ilídio Castro, que revela uma dramaturgia
límpida e uma torrencialidade verbal onde ecoa o teatro popular português;
aquele teatro que influenciou Gil Vicente e António José da Silva, que perdurou
nas aldeias portuguesas até ao século XX e que foi levado pelas naus e
caravelas para outros lugares do mundo e aí ganhou raízes, como em São Tomé e
Príncipe ou no Nordeste Brasileiro.
Recapitulemos
brevemente toda a insanidade que são as Comédias do Minho: numa época em que se
aposta nas ditas «indústrias criativas», aquarteladas em zonas urbanas e
«centrais», para criarem «produtos» a serem consumidos passivamente por
clientes pagantes; numa altura em que somos todos urbanos, suburbanos,
europeus, cosmopolitas, especialistas, internacionais e virtuais, temos uma
companhia de teatro numa zona rural, periférica, intermunicipal, que faz um
festival de teatro gratuito, amador, com salas cheias de gente de todas as
idades e camadas sociais, que dá formação artística a não-profissionais e lhes
dá a possibilidade de criarem cultura, de desenvolverem mecanismos de criação,
de se confrontarem com o outro ou - o que é ainda mais difícil - de se
confrontarem consigo próprias, de se pensarem como pessoas e como comunidades,
não através de alta tecnologia ou de «peritos internacionais», mas através da
forma mais natural de pensar: com o corpo, com os gestos, com a presença, com a
ação.
Em
suma, uma companhia de teatro que mostra que a única forma de transformar os
espaços e as pessoas é através do esforço e empenho continuado das próprias
pessoas. Um companhia que faz aquilo que um perito americano chamaria
«empowerment», mas a que eu chamo apenas de dar liberdade. A forma mais
profunda de liberdade, aquela que assenta na imaginação e no fazer.
Uma
maluqueira completa, dizia eu. Uma subversão. Um gesto radical. Uma ameaça à
crise crónica em que o país tanto se revê. Algo que merecia ser estudado num
congresso repleto de peritos internacionais, comissões, debates, estudos,
estatísticas e inquéritos. Mas, enquanto isso não acontece (e talvez seja
melhor que não aconteça), que as Comédias não se cansem e continuem a mostrar
os frutos do seu trabalho no FITAVALE.
Voltando
ao FITAVALE, o mesmo autarca acabou por compreender o motivo do riso - que nada
tinha a ver com ele, mas que por discrição não irei aqui revelar - e acabou por
partilhar dele. Mais um convertido à loucura do FITAVALE, portanto. Convido-vos
a converterem-se também num dos próximos anos. Afinal, as comunidades não são
entidades graníticas e fechadas, são rios, como o Minho, fluídos e difusos,
únicos e irrepetíveis, e sempre a acolher novos afluentes que lhes possam
engrossar o caudal.
Impressões sobre o FITAVALE já a caminho do terceiro ano
Ricardo Braun **
1.
A ideia tinha tudo para não resultar. Durante três dias, em Maio de 2011, cinco
grupos de teatro amador de cinco concelhos do Alto Minho (os concelhos das
Comédias: Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira)
cruzam o território e apresentam-se, longe de casa, longe do seu público. Os
grupos não se conhecem, nunca viram o trabalho uns dos outros, nem nunca
tiveram essa vontade. Existem localmente e trabalham para si. A proposta de os
juntar num fim-de-semana de apresentações e de vivência do território permitiu
que se criasse uma rede efectiva, funcional, de troca de experiências, de
expectativas, e de real partilha de teatro. Para os espectadores, de activação
de um aparelho crítico. (Pude ouvir, no Minho, conversas, impressões,
referências, que há muito não ouço em foyers de outros teatros, tão outros e a
maior parte das vezes tão acríticos). Um ano depois, perguntamo-nos como
poderia a ideia não resultar. Os grupos conhecem-se, acompanham-se. Viajam no
território. Oferecem e procuram teatro.
2.
Várias vezes, já, a palavra “território”: múltiplo e indivisível. O projecto
total das Comédias funciona porque conhece o seu território com as suas
diferenças e porque permite que esse mesmo espaço, o espaço da absoluta
diferença, seja reivindicado por cada um dos grupos. Foram-nos apresentados
cinco espectáculos completamente diferentes. Palavras-chave (algumas):
Schnitzler. Jodorowski. Tati (ou, Variações sobre Playtime) (entre Braga e Nova
Iorque). Variações sobre Verdoejo, entre Valença e Monção. Um novo texto
português. (Pequeno parêntesis: “um novo texto português” carrega bem mais
implicações do que à primeira vista parece. Tema para uma possível reflexão: o
texto amador. Tese: não há textos amadores). Mais: cada um dos grupos, neste
segundo ano, propôs-se de forma muito consciente fazer algo que não lhes fosse
imediato. O espaço da absoluta diferença torna-se, então, um espaço de risco,
de experimentação e de auto-questionamento de todos enquanto espectadores
(primeiro) e enquanto criadores (depois) (ou vice-versa).
3.
Uma ideia que ouvi, ao almoço, de um membro de um dos grupos: uma temporada de
teatro (e por que não) partilhada por todos, pensada colectivamente, somada de
espectáculos de todos os grupos. A solidificação de uma dinâmica conjunta e
contínua, ao longo do ano.
4.
A cada grupo de teatro amador cabe um dos actores da companhia,
actor-encenador-dinamizador(-tudo), que trabalha com eles ao longo do ano e os
orienta na procura e construção do espectáculo. Os universos encontram-se de
todos os envolvidos, contaminam-se, enchem-se de referências. A competência
teatral por contágio. Amadores e profissionais. Também: alguns dos actores que
pertencem aos grupos puderam, ao longo do ano, trabalhar com diversíssimos
outros criadores, em outros projectos da companhia. Várias vezes, já, a
expressão “ao longo do ano”.
5.
Breve aparte, sobre profissionais e amadores: vi durante o Fitavale aquele que
foi, muito possivelmente, o melhor espectáculo que pude ver este ano. Já vamos
em Junho.
6.
(O território, mais uma vez). Fala-se muito (na cidade) da mobilidade de
públicos (entre teatros/propostas) e aqui essa mobilidade é feita de estradas,
percebem-se distâncias e fazem-se ligações, isto é, organizam-se as referências
artísticas em cima de um mapa real. O gesto de ir, de sair, é fundamental, para
quem faz e para quem vê. Exige-se de todos uma maior responsabilidade, de onde
uma maior liberdade. O criador é espectador é criador. (O óbvio é tudo menos
óbvio). Nesta segunda edição, entre setecentos e oitocentos espectadores viram
os cinco espectáculos ao longo dos três dias. Em todas as apresentações
verificou-se um aumento significativo de público em relação ao ano anterior.
Criou-se um público que sempre existira, mas sem o saber. Um público latente.
(Pense-se depois, noutro lugar, sobre a latência das cidades).
7.
Tema para outra possível reflexão: o teatro amador e a nova Volksstück
(Horváth, Fleißer, Fassbinder, Kroetz). “A luta entre indivíduo e sociedade”
(Hansjörg Schneider sobre Horváth). “Fé caridade esperança” no Alto Minho.
8.
Importa, então, compreender o Fitavale como um espaço de celebração de um ano
inteiro de trabalho. Um trabalho próximo, sério, e, acima de tudo, continuado
no tempo, que é, também, a única forma de se criarem os proverbiais públicos
que ninguém sabe onde estão. Estão onde permitirmos que estejam. (A democracia
da experiência cultural). Querem ser implicados. Reivindicam a liberdade de
querer ir ver.
9.
Trata-se, portanto, de uma proposta continuada de se montar uma escola (péssima
palavra) de competências, tanto para os criadores como para os espectadores.
Cada um destes cinco grupos vem adquirindo ferramentas artísticas que, muito
facilmente, lhes permitirão organizar os seus próprios espectáculos de forma
autónoma no espaço de poucos anos. Os actores das Comédias desdobram-se de
capacidades, complicam-se enquanto criadores e enquanto actores, vivem os
grupos. Os espectadores, confrontados com novas linguagens, com novos objectos,
equipam-se de competências críticas, cultivam uma exigência responsável,
informada. (Isabel Alves Costa: “A atitude das pessoas é: mas o que é que eles
irão fazer a seguir? Não estão de todo à espera do mesmo”. Alexandra Moreira da
Silva: “Mas estão à espera de alguma coisa. Esperam verdadeiramente, e isso
será talvez o que de mais político existe no teatro”). Então, e para fechar: o
projecto total das Comédias (pedagógico, comunitário, companhia de teatro) a
provocar o aparecimento do agente total (espectador=criador).
10.
Já se escolhem textos para 2013. Bom trabalho.
*Jorge Palinhos é dramaturgo e docente universitário. Tem colaborado com
várias companhias portuguesas e estrangeiras.
** Ricardo
Braun é autor, tradutor e dramaturgista.
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