Monday, June 18, 2012

CADERNO FITAVALE 2012




FITAVALE - Inventar comunidades

Jorge Palinhos *


O teatro ama a pedra. Sempre a amou, dos anfiteatros gregos, aos mercados medievais, às fachadas dos teatros do romantismo. À falta de pedra, era de betão o anfiteatro cinzento e escuro coberto com telhado de zinco, no meio do casario de Verdoejo, nos arredores de Valença, o local onde decorria a cerimónia de encerramento do II Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do Minho - FITAVALE. Dentro do anfiteatro a transbordar de pessoas e entusiasmo, um autarca subiu ao palco para assinalar o encerramento do FITAVALE. Mal o acrónimo do Festival se lhe soltou dos lábios, foi acolhido por uma gargalhada coletiva que o deixou perplexo e a perguntar para os lados o que se passava.

O riso é um segredo, e quando esse segredo, esse filamento de imaginação, é partilhado por centenas de pessoas, sabemos que há algo que une essas pessoas e faz delas comunidade. E aquilo que se viu nos três dias do festival foi a invenção de uma comunidade.

O Festival em si é uma loucura e os seus organizadores, as Comédias do Minho lideradas por João Pedro Vaz, são um bando de loucos. Não loucos perigosos, mas loucos preciosos. A ideia do festival: apresentar cinco peças de teatro amadoras, dirigidas pelos profissionais das Comédias do Minho, montadas por associações locais, apresentadas em concelhos do vale do Alto Minho, que não sejam a sede da dita associação, ocupando diferentes espaços num raio de dezenas de quilómetros e movendo centenas de pessoas e equipamento ao longo dos cinco diferentes concelhos - Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira -, durante um fim-de-semana inteiro. Loucos, como eu dizia.

Num universo onde já não há messias nem santos, só os loucos é que ainda conseguem fazer milagres. E o FITAVALE é um milagre. Um milagre de esforço, entusiasmo, alegria, união, partilha, generosidade, improvisação e até inconsciência, que durante três dias transforma a região, criando dentro dela um mundo imaginário: o mundo do FITAVALE, onde centenas de pessoas, de diferentes concelhos, veem teatro, a mais louca das artes.

É que o teatro, ao contrário da prestigiada literatura, do glamoroso cinema, das veneráveis artes plásticas ou da irreverente multimédia, nunca exigiu o domínio de tecnologias avançadas, nunca exigiu materiais dispendiosos, nunca implicou técnicas de reprodução mecânica ou digital, nunca se refugiou num tempo e num espaço longínquos. É apenas algo que se faz aqui e agora, com corpos, gestos, vozes, suor, trabalho, perdigotos e uma fome torrencial de partilha com aqueles que nos rodeiam. É uma arte que assenta nessa loucura que é a de ter alguém à nossa frente a falar e a agir como se o mundo fosse diferente. Como se o mundo pudesse ser diferente. Não admira por isso que sempre tenha sido a arte que mais atemorizou os estados e as instituições. Haverá coisa mais louca e subversiva que inventar um presente diferente?

Talvez por isso, o teatro sempre foi a arte mais popular e a arte mais comunitária. A arte que se praticou em todas as aldeias e bairros de Portugal até há poucas décadas, que se podia fazer com uma máscara, um papel, um farrapo de roupa e muita vontade. A arte que, no dizer de George Steiner, inventa comunidades, que estabelece vínculos entre aqueles que veem e aqueles que fazem, que cria gestos, palavras, histórias e imaginários comuns. Veja-se como a estrutura do teatro é justamente a do viver em comunidade: diferentes pessoas que têm de conviver no mesmo espaço, negociar o mesmo espaço, partilhar a fala mítica que define o ser humano, e ser uns com os outros e uns contra os outros, tal como Georg Simmel definia a ideia de comunidade.

E, durante um fim-de-semana, esse lugar mítico que é o vale tornou-se um lugar ainda mais mítico. Cinco peças notáveis, que revelam como o teatro pode ser o óculo para uma comunidade ver mais longe, ou o espelho para se ver a si própria.

No primeiro caso temos “Dança de Roda”, de Arthur Schnitzler, montado pelo Teatro Amador Courense, sob direção de Mónica Tavares, que nos mostra como uma história escrita há mais de cem anos pode ainda ter ressonância hoje.

Temos também «Nim», pelos Outra Cena, de Vila Nova de Cerveira, dirigido por Tânia Almeida, em que o universo esotérico de Alejandro Jodorowski funde com a vida quotidiana dos próprios atores, mostrando como é pouca a distância entre um e outros.

A olhar também longe, temos também «Voz Off», pelo Os Simples, Grupo Amador de Teatro de Melgaço, dirigido por Gonçalo Fonseca, que monta uma maquinaria cénica de uma complexidade inalcançávek por muitas companhias profissionais, misturando elementos do imaginário francês de Jacques Tati com elementos minhotos, para criar algo ao mesmo tempo exótico e reconhecível.

Já do outro lado, do lado de quem olha para si próprio, para quem é, temos «Garganta», pelos Verde Vejo, da Associação Cultural de Verdoejo, Valença, coordenados por Rui Mendonça, que escolheram encenar as suas próprias memórias comunitárias, da forma como elas são mais verdadeiras: como fantasmas impalpáveis e difusos, mas também fortes e omnipresentes nos mais simples dos gestos.

Por fim, e acabo com a peça que inaugurou o Festival, «O Passeio dos Mortos», pela Associação Filarmónica Milagrense, de Monção, dirigida por Luís Filipe Silva. Uma meditação sobre os efeitos sociais da Guerra Civil Espanhola na Galiza, escrita por um membro da companhia, Ilídio Castro, que revela uma dramaturgia límpida e uma torrencialidade verbal onde ecoa o teatro popular português; aquele teatro que influenciou Gil Vicente e António José da Silva, que perdurou nas aldeias portuguesas até ao século XX e que foi levado pelas naus e caravelas para outros lugares do mundo e aí ganhou raízes, como em São Tomé e Príncipe ou no Nordeste Brasileiro.

Recapitulemos brevemente toda a insanidade que são as Comédias do Minho: numa época em que se aposta nas ditas «indústrias criativas», aquarteladas em zonas urbanas e «centrais», para criarem «produtos» a serem consumidos passivamente por clientes pagantes; numa altura em que somos todos urbanos, suburbanos, europeus, cosmopolitas, especialistas, internacionais e virtuais, temos uma companhia de teatro numa zona rural, periférica, intermunicipal, que faz um festival de teatro gratuito, amador, com salas cheias de gente de todas as idades e camadas sociais, que dá formação artística a não-profissionais e lhes dá a possibilidade de criarem cultura, de desenvolverem mecanismos de criação, de se confrontarem com o outro ou - o que é ainda mais difícil - de se confrontarem consigo próprias, de se pensarem como pessoas e como comunidades, não através de alta tecnologia ou de «peritos internacionais», mas através da forma mais natural de pensar: com o corpo, com os gestos, com a presença, com a ação.

Em suma, uma companhia de teatro que mostra que a única forma de transformar os espaços e as pessoas é através do esforço e empenho continuado das próprias pessoas. Um companhia que faz aquilo que um perito americano chamaria «empowerment», mas a que eu chamo apenas de dar liberdade. A forma mais profunda de liberdade, aquela que assenta na imaginação e no fazer.

Uma maluqueira completa, dizia eu. Uma subversão. Um gesto radical. Uma ameaça à crise crónica em que o país tanto se revê. Algo que merecia ser estudado num congresso repleto de peritos internacionais, comissões, debates, estudos, estatísticas e inquéritos. Mas, enquanto isso não acontece (e talvez seja melhor que não aconteça), que as Comédias não se cansem e continuem a mostrar os frutos do seu trabalho no FITAVALE.

Voltando ao FITAVALE, o mesmo autarca acabou por compreender o motivo do riso - que nada tinha a ver com ele, mas que por discrição não irei aqui revelar - e acabou por partilhar dele. Mais um convertido à loucura do FITAVALE, portanto. Convido-vos a converterem-se também num dos próximos anos. Afinal, as comunidades não são entidades graníticas e fechadas, são rios, como o Minho, fluídos e difusos, únicos e irrepetíveis, e sempre a acolher novos afluentes que lhes possam engrossar o caudal.

Impressões sobre o FITAVALE já a caminho do terceiro ano

Ricardo Braun **


1. A ideia tinha tudo para não resultar. Durante três dias, em Maio de 2011, cinco grupos de teatro amador de cinco concelhos do Alto Minho (os concelhos das Comédias: Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira) cruzam o território e apresentam-se, longe de casa, longe do seu público. Os grupos não se conhecem, nunca viram o trabalho uns dos outros, nem nunca tiveram essa vontade. Existem localmente e trabalham para si. A proposta de os juntar num fim-de-semana de apresentações e de vivência do território permitiu que se criasse uma rede efectiva, funcional, de troca de experiências, de expectativas, e de real partilha de teatro. Para os espectadores, de activação de um aparelho crítico. (Pude ouvir, no Minho, conversas, impressões, referências, que há muito não ouço em foyers de outros teatros, tão outros e a maior parte das vezes tão acríticos). Um ano depois, perguntamo-nos como poderia a ideia não resultar. Os grupos conhecem-se, acompanham-se. Viajam no território. Oferecem e procuram teatro.

2. Várias vezes, já, a palavra “território”: múltiplo e indivisível. O projecto total das Comédias funciona porque conhece o seu território com as suas diferenças e porque permite que esse mesmo espaço, o espaço da absoluta diferença, seja reivindicado por cada um dos grupos. Foram-nos apresentados cinco espectáculos completamente diferentes. Palavras-chave (algumas): Schnitzler. Jodorowski. Tati (ou, Variações sobre Playtime) (entre Braga e Nova Iorque). Variações sobre Verdoejo, entre Valença e Monção. Um novo texto português. (Pequeno parêntesis: “um novo texto português” carrega bem mais implicações do que à primeira vista parece. Tema para uma possível reflexão: o texto amador. Tese: não há textos amadores). Mais: cada um dos grupos, neste segundo ano, propôs-se de forma muito consciente fazer algo que não lhes fosse imediato. O espaço da absoluta diferença torna-se, então, um espaço de risco, de experimentação e de auto-questionamento de todos enquanto espectadores (primeiro) e enquanto criadores (depois) (ou vice-versa).

3. Uma ideia que ouvi, ao almoço, de um membro de um dos grupos: uma temporada de teatro (e por que não) partilhada por todos, pensada colectivamente, somada de espectáculos de todos os grupos. A solidificação de uma dinâmica conjunta e contínua, ao longo do ano.

4. A cada grupo de teatro amador cabe um dos actores da companhia, actor-encenador-dinamizador(-tudo), que trabalha com eles ao longo do ano e os orienta na procura e construção do espectáculo. Os universos encontram-se de todos os envolvidos, contaminam-se, enchem-se de referências. A competência teatral por contágio. Amadores e profissionais. Também: alguns dos actores que pertencem aos grupos puderam, ao longo do ano, trabalhar com diversíssimos outros criadores, em outros projectos da companhia. Várias vezes, já, a expressão “ao longo do ano”.

5. Breve aparte, sobre profissionais e amadores: vi durante o Fitavale aquele que foi, muito possivelmente, o melhor espectáculo que pude ver este ano. Já vamos em Junho.

6. (O território, mais uma vez). Fala-se muito (na cidade) da mobilidade de públicos (entre teatros/propostas) e aqui essa mobilidade é feita de estradas, percebem-se distâncias e fazem-se ligações, isto é, organizam-se as referências artísticas em cima de um mapa real. O gesto de ir, de sair, é fundamental, para quem faz e para quem vê. Exige-se de todos uma maior responsabilidade, de onde uma maior liberdade. O criador é espectador é criador. (O óbvio é tudo menos óbvio). Nesta segunda edição, entre setecentos e oitocentos espectadores viram os cinco espectáculos ao longo dos três dias. Em todas as apresentações verificou-se um aumento significativo de público em relação ao ano anterior. Criou-se um público que sempre existira, mas sem o saber. Um público latente. (Pense-se depois, noutro lugar, sobre a latência das cidades).

7. Tema para outra possível reflexão: o teatro amador e a nova Volksstück (Horváth, Fleißer, Fassbinder, Kroetz). “A luta entre indivíduo e sociedade” (Hansjörg Schneider sobre Horváth). “Fé caridade esperança” no Alto Minho.

8. Importa, então, compreender o Fitavale como um espaço de celebração de um ano inteiro de trabalho. Um trabalho próximo, sério, e, acima de tudo, continuado no tempo, que é, também, a única forma de se criarem os proverbiais públicos que ninguém sabe onde estão. Estão onde permitirmos que estejam. (A democracia da experiência cultural). Querem ser implicados. Reivindicam a liberdade de querer ir ver.

9. Trata-se, portanto, de uma proposta continuada de se montar uma escola (péssima palavra) de competências, tanto para os criadores como para os espectadores. Cada um destes cinco grupos vem adquirindo ferramentas artísticas que, muito facilmente, lhes permitirão organizar os seus próprios espectáculos de forma autónoma no espaço de poucos anos. Os actores das Comédias desdobram-se de capacidades, complicam-se enquanto criadores e enquanto actores, vivem os grupos. Os espectadores, confrontados com novas linguagens, com novos objectos, equipam-se de competências críticas, cultivam uma exigência responsável, informada. (Isabel Alves Costa: “A atitude das pessoas é: mas o que é que eles irão fazer a seguir? Não estão de todo à espera do mesmo”. Alexandra Moreira da Silva: “Mas estão à espera de alguma coisa. Esperam verdadeiramente, e isso será talvez o que de mais político existe no teatro”). Então, e para fechar: o projecto total das Comédias (pedagógico, comunitário, companhia de teatro) a provocar o aparecimento do agente total (espectador=criador).

10. Já se escolhem textos para 2013. Bom trabalho.


*Jorge Palinhos é dramaturgo e docente universitário. Tem colaborado com várias companhias portuguesas e estrangeiras.
** Ricardo Braun é autor, tradutor e dramaturgista.

Wednesday, June 6, 2012

PRÉMIO DA CRÍTICA 2011

A Associação Portuguesa de Críticos de Teatro atribuiu o Prémio da Crítica, relativo ao ano de 2011, às Comédias do Minho. O júri foi constituído por Alexandra Moreira da Silva, Constança Carvalho Homem, João Carneiro, Maria Helena Serôdio e Rui Monteiro.

Comédias do Minho
Duas ou três ideias sobre um teatro necessário

Alexandra Moreira da Silva
  1. “A movida artística”
Num pequeno texto de introdução ao programa de 2011 das Comédias do Minho, o leitor /espetador contemporâneo, incauto porque conformado com a já habitual necessidade de circunscrever o seu interesse ao que se vai fazendo aqui e agora, adiando a sua natural curiosidade relativamente a configurações programáticas mais amplas – entenda-se para uma temporada – sendo obrigado a resignar-se, não raras vezes, perante a incerteza ou, pior ainda, o abandono de projetos e ambições nas mais variadas áreas e domínios artísticos, espanta-se com a ousadia, o otimismo, a confiança e a persistência que podemos ler nas palavras inaugurais do referido texto: “As Comédias do Minho, durante os próximos dois anos vão mergulhar ainda mais no seu Território à procura de novos desafios – temas e paisagens do Vale do Minho vão ser ponto forte de arriscados e profundos trabalhos de criação”. O mais extraordinário é que prometeram e cumpriram. Pelo menos no primeiro ano, em 2011, e, de acordo com o novo caderno de programação, preparam-se já para assegurar o segundo ano com o mesmo dinamismo e a mesma criatividade.

A “movida artística”[i] que as Comédias instalaram no Alto Minho passa muito pela Companhia de Teatro da qual fazem parte, para além do seu diretor artístico João Pedro Vaz, os actores e criadores Gonçalo Fonseca, Luís Filipe Silva, Mónica Tavares, Rui Mendonça e Tânia Almeida que decidiram mudar-se com diferentes armas artísticas e reconhecida bagagem teatral para o Alto Minho, dispostos a arregaçarem as mangas e a dedicarem-se, talvez mais do que nunca, a essa “arte poderosamente arcaica”, como lhe chama Jean-Christophe Bailly[ii], que é o teatro.
Mas não só dos residentes vive a dinâmica deste projeto. A “movida” implica, desde logo, uma rede de vasos comunicantes que tem levado até aos cinco concelhos do Vale do Minho (Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira) criadores tão diversos quanto Pedro Penim, Madalena Vitorino, Sílvia Real, Igor Gandra, Marcos Barbosa ou mais recentemente Nuno Cardoso e Joana Providência. Escusado será dizer que não se trata de fazer um teatro regionalista, nem sequer um teatro etnográfico. Os projetos partem de materiais e ferramentas que funcionam “em Melgaço ou em Reiquejavique”[iii], como afirma Pedro Penim: de Steven Berkoff, aos vídeos do YouTube, passando pela Bíblia ou pelo Fidalgo Aprendiz, tudo pode ser trabalhado, repensado e visto no Alto Minho, com o mesmo rigor e a mesma seriedade com que estes trabalhos foram apresentados no Balleteatro, no Porto, ou no TNDM, em Lisboa.

Em 2011, permito-me destacar o projeto Casa Grande, co-produzido pela Fundação Lapa do Lobo, que resultou na criação de cinco espetáculos a partir de cinco espaços físicos diferentes. Casas de família, solares desabitados, vazios ou devolutos, foram ocupados, transformados, revisitados por Tânia Almeida, que assinou a encenação deste projeto, por atores (profissionais e amadores), por Rui Mendonça, Lucília Raimundo, Ana Limpinho, Maria João Castelo e Vasco Ferreira que integraram a equipa artística de Casa Grande, e sobretudo por um público atento, ávido e de uma rara heterogeniedade, todos convictos e conscientes de que os espaços também têm memória. E com a memória vem o tempo, e com o tempo vêm as histórias (da aristocracia monárquica na passagem para a República, por exemplo, ou dos militantes anti-fascistas na clandestinidade no período pré-revolucionário). Em 1983, numa conferência proferida em Roma, Antoine Vitez fazia a seguinte afirmação sobre a prática teatral: “É um trabalho de ordem monástica, mesmo se a nossa vida não é monástica. Somos pessoas que nos fechamos em sítios fechados (...) e nesses lugares conservamos frases que já foram pronunciadas e concebidas, e dedicamo-nos a reconstituir movimentos através da imaginação e a partir do rasto de acções que foram escritas. Fazemos isto para trabalhar, para criticar a memória da humanidade. É este o nosso ofício, trabalhar sobre esta memória.”[iv] Entre o íntimo e o político, Casa Grande parece subscrever as palavras de Antoine Vitez, apresentando-se, antes de mais, como um projeto que interroga a identidade, que percorre insistentemente um espaço, um tempo, uma memória, e que deste modo questiona e reescreve a ficção.
  1. “Aproximarte” é aproximarmo-nos: itinerâncias polifónicas
Entre a criação contemporânea e o trabalho no terreno, as Comédias não têm tempo a perder. O projeto “Aproximarte” envolve várias escolas dos cinco concelhos do Vale do Minho do ensino pré-escolar, básico e secundário, bem como professores, famílias e utentes APPACDM. Contrariamente ao que se possa imaginar, esta vertente pedagógica das Comédias não constitui uma atividade marginal, bem pelo contrário, trata-se de um labor nuclear que escolhe e utiliza uma grande diversidade de ferramentas e de estratégias: oficinas de dança, de cinema de animação, de movimento, de formação artística, cursos de teatro, encontros com criadores... são apenas algumas das propostas que visam a promoção e o desenvolvimento de um conceito de “público” que conscientemente contraria a muito contemporânea noção de “audiência”. Isabel Alves Costa, mentora incontornável deste projeto, falava da necessidade de se estabelecer “uma relação íntima com a população”; “Aqui vemos ao vivo o que é a formação dos públicos”, afirma. “A atitude das pessoas é: mas o que é que eles irão fazer a seguir? Não estão de todo à espera do mesmo”[v], conclui. Mas estão à espera de alguma coisa. Esperam verdadeiramente, e isso será talvez o que de mais político existe no teatro. Como afirma Denis Guénoun “o caráter político do teatro não está no palco – ou (...) em todo o caso, não é no palco que ele se encontra em primeiro lugar – mas sim na sala”[vi]. Ou seja, nessa capacidade de conseguir reunir, a uma certa hora, num determinado lugar, uma comunidade a que talvez possamos chamar “teatral”. Em 2011, 13 500 espetadores assistiram aos espetáculos das Comédias do Minho – número invejável nos tempos que correm.

Contudo, mais importante do que os números – e este é certamente um dos grandes méritos das Comédias – será esta vontade, esta capacidade de criar aquilo a que Jean-Christophe Bailly chama uma comunidade de espera, conceito a distinguir de uma pura aproximação quantitativa porque, como refere o autor, “não é adicionando o número de leitores de livros, o número de visitantes de exposições e o número de espetadores de teatro que assistiremos à formação de uma qualquer consistência.”[vii] A comunidade de espera pressupõe uma vontade de abertura. Abertura ao tempo, desde logo, a um tempo lento que mais não é do que um espaço de sentidos e de desejo de partilha desses sentidos. O teatro não é um filme que se leva para casa, não é um quadro que se vê num museu, não é um livro que se lê na solidão da poltrona. O teatro é um desejo comum.

Nestas itinerâncias polifónicas, há ainda lugar para os espectáculos comunitários, onde participam grupos de teatro amador e associações locais, como é o caso da Queima do Judas, dos cinco acontecimentos artísticos que assinalaram a comemoração dos 750 do concelho de Monção, ou do muito improvável – mas que contrariando todas as improbabilidades conta já com uma segunda edição – FITAVALE (Festival Itinerante de Teatro Amador do Vale do Minho).
São assim as Comédias do Minho, são tudo isto e muito mais, conscientes de que na cidade ou na “discreta vila, perdida no meio da serra, já só pedras e quase a tocar no céu”[viii], o teatro é não só possível como também necessário.
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[i]A expressão “movida artística” surge no final do texto de introdução ao programa  de 2011 das Comédias do Minho: “Um programa intenso, utópico, enérgico! Contra a austeridade, uma verdadeira movida artística, um centro cultural itinerante, um centro cultural na paisagem!”
[ii] Jean-Christophe Bailly, “Un jour mon prince viendra”, in Stiegler, Bailly, Guénoun, Le Théâtre, le peuple, la passion, Besonçon, Les Solitaires Intempestifs, 2006, p. 67
[iii] Pedro Penim citado por Inês Nadais in “Reiquejavique no Alto Minho”, Público, 06.01.2009.
[iv] Antoine Vitez, “La Réssurection”, Antoine Vitez, Actes Sud-Papiers/ Conservatoire d’Art Dramatique, Mettre en Scène, 2006, p. 108
[v] Isabel Alves Costa citada por Inês Nadais in “Estes actores foram trabalhar para o campo”, Público, 03.04.2009.
[vi] Denis Guénoun, “Que faire du théâtre, Que faire au théâtre”, Livraison et délivrance, Paris, Belin, 2009, p. 46.
[vii] Jean-Christophe Bailly, “Un jour mon prince viendra”, in Stiegler, Bailly, Guénoun, Le Théâtre, le peuple, la passion, Besonçon, Les Solitaires Intempestifs, 2006, p. 77.
[viii] Tiago Bartolomeu Costa, “De pés na terra e teatro como céu”, Público, 24.01.2012.